Capítulo 9 "Gringolândia"

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Mesmo antes de Plutarco Elías Calles assumir a presidência em 1924, a euforia dos primeiros anos do renascimento muralista já tinha começado a esfriar e azedar. Estudantes conservadores da Preparatória amotinaram-se, apagando e depredando os murais novos da escola; no mesmo dia em que Vasconcelos, que havia encomendado os murais, renunciou ao cargo de ministro da Educação, Siqueiros e Orozco foram impedidos de subir no andaime. Em agosto, um decreto presidencial suspendeu a maior parte da produção de murais no México. Os muralistas começaram a se dispersar; Siqueiros abandonou temporariamente a pintura para assumir o papel de líder operário no estado de Jalisco. Em 1927, Orozco foi para os Estados Unidos e passou os seis anos seguintes pintando murais em Pomona College, na cidade de Claremont, Califórnia, na Nova Escola de Pesquisa Social em Manhattan, e no Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire.A situação de Rivera era diferente. Embora sua obra também tenha sido vandalizada e ameaçada em 1924 — o diretor do Departamento de Belas-Artes proclamou que seu primeiro ato oficial seria "cobrir com cal aqueles horríveis afrescos"[222] —, Rivera de algum modo conseguiu cair nas graças de José Manuel Puig Casauranc, ministro da Educação de Calles, que se referia a Rivera como "o filósofo do pincel"[223], e que ao longo dos quatro anos seguintes manteve o muralista na folha de pagamento do governo (o fato de que Diego aceitara pagamento para pintar um mural no Palácio Nacional fora a causa imediata de sua expulsão do Partido Comunista). Mas o período de 1929 a 1934 foi de repressão política. O orçamento militar cresceu, e a atitude de tolerância com relação aos esquerdistas mudou até assumir a forma de uma virulenta hostilidade. O apoio governamental aos sindicatos de trabalhadores deixou de existir. Agora, os comunistas (Siqueiros, por exemplo) frequentemente eram presos, deportados ou assassinados, ou simplesmente "desapareciam". Entre 1930 e 1931, a histeria anticomunista no México havia engendrado os Camisas Douradas, organização de cunho fascista. Os motins estudantis que em 1924 haviam resultado em ataques aos murais da Preparatória podem ter parecido pueris se comparados ao clima de ameaça que agora havia se instalado. A despeito de sua agilidade, resistência e determinação de manter seu status e o pincel em ação, Rivera não tinha como saber se e quando um funcionário do governo usando terno escuro apareceria no andaime e o impediria de trabalhar — afinal de contas, a visão que ele tinha do México era marxista. Se os comunistas o chamavam de "pintor dos milionários" e "agente do governo", os direitistas o rotulavam de agente da revolução. Era uma boa hora para ir embora, o que ele fez, juntando-se a Orozco nos Estados Unidos (quando Siqueiros foi expulso do México, em 1932, também foi para os Estados Unidos, fixando-se em Los Angeles, onde dava aulas de técnica de afresco). A situação era repleta de ironias, como o embaixador Morrow incumbindo Rivera de pintar murais revolucionários no palácio dos conquistadores espanhóis. O renascimento do muralismo mexicano ganhara notoriedade nos Estados Unidos em meados da década de 1920, e Rivera em particular se transformara em lenda. Ninguém parecia dar muita atenção ao fato de que ele era um comunista cujos murais estavam coalhados de martelos e foices, estrelas vermelhas e retratos pouco lisonjeiros de Henry Ford, John D. Rockefeller, J. P. Morgan e outros barões, banqueiros e industriais. Como definiu o crítico Max Kozloff[224]: "Em nenhum outro lugar a arte declaradamente proletária foi patrocinada com tanta generosidade por grandes líderes capitalistas". Assim como o reacionário governo mexicano, os grandes líderes do capitalismo estadunidense podiam alardear sua tolerância e largueza de espírito empregando um artista como Rivera: qualquer um que pagasse pelas mensagens marxistas de Rivera devia ter em mente o bem público, e não o ganho privado. Ao aceitar encomendas e comissões do governo mexicano e de capitalistas norteamericanos, Rivera caiu no descrédito do Partido Comunista, mas granjeou também a oportunidade de criar obras públicas para a glorificação e edificação do proletariado industrial. Afinal de contas, não fora o próprio Lênin quem aconselhara os revolucionários a fazer a revolução de dentro para fora? Que lugar melhor do que o país que era ao mesmo tempo a vanguarda da era das máquinas e que, no início da Grande Depressão, parecia pronto para a revolução?Rivera não guardava segredo de seus propósitos revolucionários. Ao fazer referência à sua expulsão do Partido Comunista, ele disse a um repórter nova-iorquino que só "me resta uma coisa[225]: provar que a minha teoria [da arte revolucionária] seria aceita numa nação industrial dominada por capitalistas. [...] Tive de vir [para os Estados Unidos] como espião, disfarçado". Sua pintura, ele disse, pretendia ser propaganda comunista: "A arte é comopresunto", ele declarou. "Alimenta as pessoas." Talvez o mais importante para Rivera fosse o fato de que os capitalistas dos Estados Unidos eram os mestres por trás dos mais maravilhosos avanços tecnológicos. O homemapelidado de "Lênin do México" sentia-se tão fascinado pela beleza da tecnologia quanto por seu potencial revolucionário. Talvez com ironia involuntária, ele disse sobre seu painel em afresco Bens congelados (1931), em que o cofre de um banco forma a subestrutura de um retrato sombrio da injustiça econômica na Manhattan nos anos da Depressão: "Há tanta beleza[226] na porta de aço do cofre. Talvez as gerações futuras reconheçam a máquina como a arte do nosso tempo".Frida e Diego embarcaram pa ra São Francisco na segunda semana de 1930, ele municiado de trabalho — encomendas para pintar murais na Bolsa de Valores de São Francisco e na Escola de Belas-Artes de São Francisco (hoje Instituto de Artes de São Francisco) —, graças aos esforços do escultor Ralph Stackpole, que ele conhecera em Paris, e William Gerstle, presidente da Comissão de Artes de São Francisco. Diego se lembrava de que na noite em que chegou o convite, "Frida sonhou[227]Blanch, entrevista particular. que estava acenando, dando adeus à família, rumo à 'Cidade do Mundo', como ela chamava São Francisco". Durante a viagem, ela surpreendeu Diego com um presente — um autorretrato (hoje perdido): "No plano de fundo havia uma linha do horizonte de uma cidade desconhecida. Quando chegamos a São Francisco, levei um susto ao constatar que a cidade que ela havia imaginado era a mesma que estávamos vendo pela primeira vez".O casal desembarcou em 10 de novembro e foi morar em um enorme estúdio de Ralph Stackpole no número 716 de Montgomery Street, no velho bairro dos artistas. Lucile Blanch, que tinha se mudado temporariamente para a cidade acompanhando o marido, o pintor Arnold Blanch, que fora dar aulas na Academia de Belas-Artes de São Francisco, morava dois andares abaixo. "Uma vez que eles não tinham telefone[228], usavam o nosso." A sra. Blanch disse que Frida não agia como artista. Ela era tímida demais com relação a suas telas para pedir que a amiga as visse. "Éramos ambas pintoras, mas nunca falávamos sobre arte", ela relembra. "Frida e eu parecíamos uma dupla de meninas risonhas. Frida era radiante quando abria a boca, fazia piada de tudo e de todos, rindo das coisas de maneira brincalhona e talvez com certo esnobismo. Ela era bastante crítica quando achava que algo era pretensioso, e zombava dos californianos."Rivera só começou a pintar sua alegoria da Califórnia na Bolsa de Valores de São Francisco em 17 de janeiro, quase dois meses após sua chegada. Primeiro precisava absorver a atmosfera e o aspecto de seu tema. Acompanhado de Frida, explorou a cidade, suas espetaculares colinas, ladeiras e pontes, sua pitoresca zona de beira-mar, a região industrial, e percorreu de carro as cercanias para ver os pomares, as torres de petróleo, uma mina de ouro,e a maravilhosa terra cor de siena queimada e ocre-alaranjada. Fez esboços das filas de pão repletas de homens derrotados, pálidos, doentios e de olhar vazio, e tomou nota das casas elegantes da Russian Hill, diante das quais homens de ternos bem cortados e mulheres em estilosos vestidos colantes e rebolantes e usando pequenos e ousados chapéus entravam em automóveis reluzentes.A fim de conhecer o povo estadunidense, Rivera foi com Frida assistir ao jogo anual de futebol americano Stanford x Califórnia. Quando indagado por um jornalista sobre suas impressões, ele comentou que o jogo não era trágico como uma tourada, mas sim alegre. "Seu jogo de futebol[229] é esplêndido, emocionante, belo. [...] um grande quadro vivo, arte espontânea e inconsciente. É arte de massa, uma nova forma de arte." Não há registros do queFrida achou. Ninguém se deu o trabalho de perguntar. Aos 23 anos de idade, ela ainda não tinha desenvolvido a personalidade exuberante e irreverente que anos mais tarde faria dela um centro das atenções comparável a Diego, e os repórteres mal a notavam, a não ser para ocasionalmente pedir que falasse de sua juventude e graciosidade. Em algum momento durante os preparativos para o mural da Bolsa, Rivera ficou obcecado pela figura de uma campeã de tênis, Helen Wills, e foi ela, para a consternação de muita gente, que ele escolheu como "representante das mulheres californianas" em sua alegoria da Califórnia. (Supõe-se que ela foi também o modelo para o nu feminino que ele pintou flutuando ou voando no teto.) Anos depois, Frida contou a uma amiga[230] que enquantoRivera estava fazendo estudos sobre Mills, acompanhando-a para quadras e jogos e desenhando a tenista em ação, ele às vezes desaparecia por dias a fio. Quando isso acontecia, Frida explorava sozinha a cidade, percorrendo de bonde suas íngremes ladeiras. Ela aperfeiçoava seu inglês, visitava museus e zanzava por Chinatown, procurando sedas chinesas com as quais fazia suas saias compridas. "A cidade e a baía são espetaculares"[231], elaescreveu à amiga de infância Isabel Campos. O que é especialmente fantástico é Chinatown. Os chineses são tremendamente simpáticos, e nunca na minha vida vi crianças tão lindas como os chinesinhos. Sim, eles são realmente extraordinários. Eu gostaria de roubar um pra que você pudesse ver por si mesma. [...] Fez todo sentido vir pra cá, porque me abriu os olhos e vi um número extraordinário de coisas novas e belas."Éramos celebrados em festas[232], jantares, recepções", Rivera relembrou. "Eu dava palestras." De fato, Diego não apenas deu palestras em instituições como a Sociedade das Mulheres Artistas de São Francisco e a Associação de Arte do Pacífico, como também recebeu (e recusou) polpudas propostas para aceitar o cargo de professor na Universidade da Califórnia e no Mills College. Uma vez que seu inglês era limitado, ele em geral ministrava suas palestras em francês fluente, e Emily Joseph, colunista de arte do jornal San Francisco Chronicle e esposa do pintor Sidney Joseph, postava-se ao seu lado e fazia as vezes de intérprete. Plateias numerosas disputavam lugar para ver Rivera discorrer sobre arte e progresso social, temas que nos anos da Depressão rendiam debates acalorados. Em dezembro, o Palácio da Califórnia da Legião da Honra realizou uma exposição individual de Rivera, e diversas galerias californianas começaram a expor sua obra; em uma das estreias, o Call-Bulletin noticiou[233] que a multidão presente consistia de "praticamente todo mundo em São Francisco que algum dia na vida cantou alguma música, representou seu país como cônsul, atravessou o deserto montado em um camelo, editou uma revista ou pisou num palco". Quando finalmente começou a pintar, Rivera mergulhou de cabeça para reunir ao seu redor um séquito de assistentes, alguns remunerados, outros voluntários, que vinham do mundo todo para ser aprendizes do lendário "maestro". Havia, por exemplo, o leal Andrés Sánchez Flores, jovem mexicano que Rivera empregou durante anos como seu químico. Especialista em testar, moer e misturar pigmentos, Sánchez também trabalhou como motorista para Frida e Diego, já que nenhum dos dois sabia dirigir. O assistente-chefe e gesseiro-estucador de Rivera nos Estados Unidos era o artista Clifford Wight, homem alto, bonito e corpulento que havia sido da polícia montada do Canadá antes de viajar ao México para pedir emprego a Rivera. Outro ajudante, este bastante excêntrico, era o pintor lorde John Hastings, inglês radical que estava a caminho do México, saindo do Taiti, com o intuito de tornar-se discípulo não remunerado de Rivera quando encontrou o mestre por acaso em São Francisco. Matthew Barnes, pintor e ator, acrescentava ao grupo uma nota de jovialidade, e havia muitos outros, que se juntavam à equipe e depois desapareciam. Os assistentes de Rivera e suas respectivas esposas ficaram amigos de Frida, mas embora ela se sentisse feliz de ter a companhia deles, nunca estreitou laços com ninguém em São Francisco. Como muitas pessoas que se sentem tímidas e desgostosas em um ambiente novo, ela era um pouco desdenhosa em relação às pessoas que conhecia, e o desdém tomava a forma de críticas ácidas. "Não morro de amores pelos gringos"[234], ela escreveu. "São chatos e todos têm cara de pão cru (especialmente as mulheres velhas)."Diego era diferente. Ele tinha um apetite voraz por novas experiências e sensações, e adorava tanto uma boa conversa como boa comida e bons vinhos. Ele apresentou Frida aos amigos: Ralph Stackpole, é claro, e sua esposa Ginette; Emily e Sidney Joseph; Timothy Pflueger, arquiteto do novo edifício da Bolsa de Valores de São Francisco; e William Gerstle. Ela também voltou a ter contato com o velho corretor de seguros e patrono das artes Albert M. Bender, que havia visitado o México e comprara pinturas de Rivera. Bender conhecia todas as pessoas certas — foi graças a seus esforços que Rivera tinha finalmente obtido permissão para entrar nos Estados Unidos (por ser comunista declarado, Rivera não conseguira visto) —, e, junto com Stackpole, arrebanhou compradores para a obra de Rivera.Em São Francisco, Frida conheceu pessoalmente Edward Weston. Ela devia estar curiosa para encontrar-se com ele, pois Tina Modotti certamente devia ter falado sobre o fotógrafo, e Rivera tinha grande admiração pelas fotos de Weston. Embora tivesse a aparência de um tranquilo professor, Weston era um vulcão whitmaniano em erupção, com uma paixão sensual e extasiada pela vida. "Sou um aventureiro[235] em viagem de descoberta", ele escreveusobre si mesmo, "pronto para receber impressões novas, ávido por novos horizontes... com os quais eu possa me identificar, e me unir com qualquer parte em que eu consiga reconhecer uma parte significativa de mim mesmo — o 'mim mesmo' dos ritmos universais." Para Weston, assim como no caso de Rivera, os novos horizontes eram invariavelmente mulheres, e, como Rivera, o fotógrafo era irresistível. "Por que esta maré de mulheres?"[236], ele se perguntava, feliz mas perplexo: "Por que vêm todas de uma só vez?". Weston conheceu os Rivera em 14 de dezembro de 1930, e anotou em seu diário: Conheci Diego![237] Eu estava parado junto a um bloco de pedra, e dei um passo a frente quando ele apareceu descendo a escadaria do pátio de Jessop Place — ele me deu um abraço que me ergueu do chão. Fotografei Diego e sua nova esposa — Frieda — também; ela é um contraste gritante com Lupe, pequena — uma bonequinha, perto de Diego, mas boneca apenas no tamanho, pois é forte e bastante bonita, mostra muito pouco do sangue alemão do pai. Vestindo traje nativo, incluindo até mesmo huaraches, ela causa muita empolgação nas ruas de São Francisco. As pessoas param para olhar para ela, maravilhadas. Comemos num pequeno restaurante italiano onde muitos artistas se reúnem, ficamos relembrando os velhos tempos no México, com a promessa de nos encontrarmos novamente em Carmel. Em uma das fotos, provavelmente tirada no estúdio de Stackpole, um Diego elefantino olha fixa e afetuosamente para sua noiva vestida com elegância em seu traje mexicano e usando três colares de pesadas contas pré-colombianas. Ela não olha para o marido. Em vez disso, encara o fotógrafo com — e isso é bastante incomum para uma mulher que raramente sorria para a câmera — uma expressão divertida, galanteadora e zombeteira.No período que passou em São Francisco, Frida também fez amizade com Leo Eloesser, famoso cirurgião torácico especializado em cirurgias ósseas, e que Rivera conhecera no México. A partir daí, pelo resto da vida Frida confiaria mais nas opiniões médicas de Eloesser do que de qualquer outro especialista, e as cartas que escreveu para ele são recheadas de perguntas sobre suas várias doenças. Em dezembro de 1930, quando consultouEloesser pela primeira vez, o médico diagnosticou uma deformação congênita de sua coluna[238] (escoliose) e achatamento de um disco vertebral. Além disso, assim que chegou a São Francisco o pé direito começou a virar para fora de forma mais pronunciada, dificultando o caminhar.Aos 49 anos[239], o dr. Eloesser era chefe de serviço do Hospital Geral de São Francisco e professor clínico da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. Mas as exigências de sua profissão não o impediam de desfrutar da companhia das pessoas que ela amava, e o homem baixinho, de cabelos pretos e olhos intensos e inteligentes era amado por todos que o conheciam, inclusive Frida. Nos anos vindouros, ele seguiria sua forte consciência social (mas não especificamente política), dedicando-se a missões humanitárias que o levariam à Rússia, à América do Sul e à China, e, em 1938, a atuar junto ao Exército Republicano espanhol. Desde sua "aposentadoria" em 1952 até sua morte em 1976, aos 95 anos de idade, ele se empenharia na medicina comunitária em uma remota ranchería perto do vilarejo mexicano de Tacámbaro, em Michoacán.Eloesser era um completo excêntrico, cujos hábitos estranhos e encantadores divertiam seus amigos. À meia-noite ele costumava sair do consultório, embarcava em sua chalupa de 32 pés e velejava até a baía da ilha Red Rock. Ao amanhecer, depois de tomar café da manhã a bordo, ele velejava de volta para a cidade e ia trabalhar. De vez em quando, abreviava o cruzeiro noturno para aparecer por volta das três da manhã na beira da cama de algumpaciente da lista de casos críticos. Eloesser era também um excelente músico, e os saraus de música de câmara em seu apartamento em Leavenworth Street eram famosos, reunindo amigos musicistas como Isaac Stern, Joseph Szigeti e Pierre Monteux. Uma vez, o cirurgião embarcou num trem para ir a um congresso de medicina munido apenas de uma escova de dentes e de sua viola. Durante a viagem, passava as noites tocando e escrevendo o artigo que apresentaria no congresso. Ninguém sabe em que momento ele dormia. Como gesto de amor e gratidão, Frida pintou Retrato do dr. Leo Eloesser (figura 21), com a dedicatória "Para o Dr. Leo Eloesser, com todo amor, Frieda Kahlo. São Francisco. Calif. 1931". Usando terno escuro e camisa branca com um colarinho alto e impecavelmente engomado, o médico está de pé, todo empertigado, com uma das mãos encostada a uma mesa sobre a qual está o objeto que o identifica — um modelo em miniatura de um barco a vela emque se lê Los Tres Amigos. Outro objeto que o identifica é o desenho assinado "D. Rivera" pendurado na parede nua, pois Eloesser era um patrono das artes. A pose é o padrão dos retratos de corpo inteiro de homens do México dos séculos xviii e xix, e o extremo primitivismo do estilo sugere que Frida tinha em mente um retrato naïf, como o de Secundino Gonzáles, obra do famoso pintor primitivista do século xix José María Estrada, que Fridaadmirava. Em Retrato do dr. Leo Eloesser, ela substituiu como sua principal fonte de inspiração a arte dos retratistas naïf mexicanos provinciais (que ela e Diego colecionavam) pelos murais e retratos de Rivera."Não podem faltar algumas notas sobre a pintura"[240], escreveu o dr. Eloesser em 10 de janeiro de 1968, quando o retrato estava prestes a ser doado pelo Hospital de São Francisco para a Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia: Frida Kahlo de Rivera pintou o retrato em minha casa, no número 2.152 de Leaventworth St., durante a primeira visita dos Rivera a São Francisco. [...] É um de seus primeiríssimos trabalhos. Predominantemente cinza e preto quanto aos tons, me representa de pé ao lado de um modelo em miniatura de veleiro. Frida jamais tinha estado em um veleiro. Ela perguntou a Diego sobre o cordame das velas, mas não ficou satisfeita com a resposta. Ele disse a ela que pintasse as velas como ela achava que deviam ser. Foi o que ela fez. Durante seus seis meses em São Francisco, especialmente quando ficou confinada por conta do problema no pé, Frida pintou diversos outros retratos. Como sempre, seus temas e modelos eram amigos, e, como sempre, a ligação pessoal entre artista e patrono ou tema afetava a aparência e o significado de sua obra: os retratos de Frida ecoam seu estilo de sociabilidade, que era direto, despretensioso, espirituoso e astuto nos julgamentos que ela fazia das pessoas. Um cuidadoso desenho a lápis capta muito bem a sofisticação e o requinte aristocráticos de lady Cristina Hastings[241], nascida em Milão e educada em Oxford, e cujas oscilações entre estados de tédio, fúria explosiva e humor Frida considerava congeniais e divertidos. Outra amiga, uma negra norte-americana cuja identidade é desconhecida, aparece em Retrato de Eva Frederick (figura 19) e em um desenho de um nu do mesmo período. Quem quer que seja, é evidente que Eva Frederick é uma mulher de inteligência e bom coração, por quem Frida nutria grande simpatia. É igualmente evidente que Frida não se dava muito bem com a modelo de Retrato da sra. Jean Wight, datado de janeiro de 1931, que mostra a esposa do assistentechefe de Rivera sentada de costas para uma janela com uma vista de São Francisco (figura 20). É um retrato insípido, convencional. Anos depois, quando Jean hospedou-se na casa de Frida e Rivera no México, Kahlo descreveu sua exasperação[242] com a convidada: Ela tem o enorme defeito de acreditar piamente que está muito doente, e não faz outra coisa a não ser tagarelar sobre suas doenças e vitaminas, mas não faz o menor esforço para estudar alguma coisa e trabalhar. Jean não tem nada na cabeça a não ser idiotices, tais como comprar vestidos novos e como pintar o rosto, e como arrumar os cabelos, de modo a melhorar a aparência. E fala o dia todo de "modas" e outras coisas estúpidas que não significam nada, e não apenas isso, mas ela fala com uma pretensão que é de deixar a gente gelado. Em meados de fevereiro, Diego já tinha terminado sua alegoria da Califórnia, menos de um mês depois de iniciada a obra. Não é surpresa nenhuma o fato de que ele e seus assistentes tenham trabalhado até o ponto da exaustão. Para se recuperar, ele e Frida deixaram São Francisco e foram para a casa da sra. Sigmund Stern, amiga de Albert Bender e proeminentebenfeitora das artes, que vivia no campo, em Atherton. O que estava programado para ser um descanso de dez dias durou seis meses, durante três dos quais Rivera pintou um mural pastoril na sala de jantar da anfitriã.É muito provável que tenha sido ali que Frida pintou Luther Burbank[243], seu retrato do horticultor californiano famoso pelo trabalho de criação de frutas e plantas híbridas (figura 22). (O criador não de novas máquinas, mas de novas plantas, fascinou Diego, que o colocou em sua alegoria da Califórnia.) Frida transformou o próprio Burbank em um híbrido — metade árvore, metade homem. Ele é pequeno em comparação com as gigantescas folhas verdes de uma planta desenraizada que "se acasalou" ou está prestes a "se acasalar" com outra planta, mas, em vez de plantar o híbrido, ele próprio está plantado: está de pé dentro de um buraco, e suas calças marrons tornaram-se um tronco de árvore. Uma espécie de visão de raio x permite a Frida ver a continuação do homem-árvore debaixo da terra, onde suas raízes se emaranham com um esqueleto humano. Burbank, literalmente com os dois pés (transformados em tronco) na cova, é o primeiro exemplo do que viria a se tornar um dos temas favoritos na pintura de Frida: a dualidade vida-morte, e a fertilização da vida pela morte. Ela ainda estava seguindo a visão de Rivera: em Chapingo, ela transformou a parte inferior do corpo nu de Tina Modotti em um tronco para mostrar a continuidade entre a planta e a vida humana, e a morte nutrindo a vida. Luther Burbank é também a primeira indicação de que Frida Kahlo se tornaria uma pintora da fantasia e não uma pintora de retratos diretos e relativamente realistas. Não temos como saber o que suscitou a mudança. É possível que ela tenha visto exemplos de arte surrealista em São Francisco, ou talvez alguma coisa em sua própria vida tenha feito com que evocasse as incursões imaginativas nos murais mexicanistas de Rivera (como os de Chapingo) ou na arte popular mexicana. Em todo caso, com sua mistura de invenção, engenhosidade e detalhes miniaturistas, com seu tempestuoso céu azul e colinas verdejantes (sem plantas, exceto pelas duas árvores frutíferas de Burbank), a tela aponta para obras matizadas de realismo e imaginação como Meus avós, meus pais e eu. Quando Frida e Diego retornaram a São Francisco, em 23 de abril, Rivera finalmente começou a trabalhar na encomenda de William Gerstle, o afresco da Escola de Belas-Artes de São Francisco. E Frida dedicou-se a Frida e Diego Rivera[244], uma espécie de retrato de casamento pintado um ano e meio depois do matrimônio (ilustração iii). Como os retratos de Jean Wight e Eva Frederick, a tela tem uma inscrição informativa escrita em uma fita, recurso usado por Kahlo e Rivera e que deriva da pintura colonial mexicana. A mensagem é de tom ingênuo, e a tela é vazada em estilo naïf e folclórico: "Aqui você vê a mim, Frida Kahlo, com meu amado marido Diego Rivera. Pintei este retrato na bela cidade de São Francisco para nosso amigo sr. Albert Bender, no mês de abril do ano de 1931". Se Frida de fato pintou Luther Burbank em Atherton, e se acreditarmos que pintou o retrato de casamento "na bela cidade de São Francisco [...] no mês de abril", então ela devia estar trabalhando com o mesmo afinco do marido, contradizendo a lembrança de Lucile Blanch de que "ela não pintava muito" e "não agia como artista" em São Francisco. A julgar pelo salto de qualidade entre o retrato da sra. Jean Wight, pintado em janeiro, e o retrato de casamento, Frida estava secretamente levando a sério seu ofício. Em maio, ela escreveu a Isabel Campos: "Passo a maior parte do tempo pintando[245]. Espero ter uma exposição em setembro (minha primeira) em Nova York. Aqui não tive tempo suficiente, só consegui vender algumas telas". No retrato duplo, ela mostra Diego e a si mesma da maneira como os californianos os viam, como recém-casados. Diego parece imenso ao lado da noiva. (Ele tinha 1,82 metro de altura, e em 1931 pesava 136 quilos. Frida tinha 1,60 metro de altura e 44 quilos.) O retrato que pinta de Rivera coincide com a descrição que faz da aparência do marido no longo ensaio "Retratode Diego", que ela escreveria anos depois para o catálogo de uma exposição de Diego: Sua barriga enorme[246], firme e lisa como uma esfera, sustenta-se sobre suas pernas fortes, belas colunas, que terminam em pés enormes apontados para os lados, em um ângulo obtuso, como se para abarcar o mundo inteiro e para escorá-lo de maneira invencível sobre a terra como um ser antediluviano, do qual emerge, da cintura para cima, um exemplo da humanidade futura, distante de nós 2 ou 3 mil anos.Rivera é retratado como o grande artista empunhando sua paleta e pincéis; Frida no papel de que ela mais gostava, a de esposa venerando o marido gênio. Diego está de pé com os pés solidamente plantados, como os alicerces de um arco do triunfo; usando delicados chinelos, os pés de Frida não parecem substanciais o bastante para fixá-la, e ela parece mal roçar o chão. Ela flutua no ar como uma bonequinha chinesa, sustentada pela força da mão de seu cônjuge monumental. Contudo, o olhar penetrante de Frida tem uma nota de humor demoníaco e força corajosa, e apesar de toda a solicitude e "feminilidade" de sua pose e seu traje, ela está calma e controlada. O retrato mostra uma jovem apresentando ao mundo — talvez com certa diferença vistosa e conveniente, mas também com orgulho de seu "bom partido" — seu novo parceiro. O retrato evoca um tipo comum no México: a esposa que assume de bom grado o papel de submissa, mas que na verdade manda na casa e controla o marido com dominação hábil e delicada.O retrato de casamento é revelador também em outro sentido: Diego está com a cabeça ligeiramente virada para o lado, na direção contrária à noiva, e seus braços estreitados junto ao próprio corpo. Sua cabeça se inclina para o próprio ombro, e seus braços se movem na direção de si mesmo; as mãos unidas do casal ocupam o centro da tela, sugerindo a importância, para Frida, dos laços do casamento. Desde o início, a pintura implica que Fridasabia que Diego não se deixava possuir. De que a primeira paixão do marido na vida era sua arte, e que embora ele pudesse amá-la, seus verdadeiros objetos de devoção eram a beleza, o México, o marxismo, o "povo", as mulheres (muitas delas), as plantas, a terra. "Diego está além de todas as relações precisas e limitadas"[247], Frida escreveu. "Ele não tem amigos, tem aliados; ele é bastante afetuoso, mas nunca se entrega." Ela queria ser sua última aliada. Em São Francisco, Frida aprendeu que uma das maneiras de ser a melhor aliada de Rivera, de prendê-lo, mesmo que fosse com o leve aperto de mãos mostrado no retrato de casamento, era ser divertida e alegre. Um exemplo: em um jantar[248] a que compareceram diversas pessoas do mundo das artes, ela notou que uma jovem sentada ao lado de Diego estava flertando acintosamente com ele; Rivera estava radiante. Frida bebericou seu vinho e iniciouseu contra-ataque; no início, Kahlo foi discreta, e começou a cantarolar e interpretar canções mexicanas. À medida que o vinho foi fazendo efeito, ela ficou mais atrevida, até que por fim tinha a mesa na palma das mãos; uma vez que agora conseguira fazer com que Diego grudasse nela os olhos afetuosos e divertidos, Frida tinha triunfado. O atrevimento e a determinação de ser "a mulher de Diego" são inequívocos no retrato de casamento de Frida; certamente foi com uma piscadela secreta que ela deu ao contorno geral de si mesma e do marido o mesmo formato da inicial gravada no cinturão de Diego — a letra D.Enquanto Frida apresentava o marido ao espectador como uma figura de pé olhando polidamente para a frente, ele estava ocupado na Escola de Belas-Artes da Califórnia apresentando-se sentado de costas para a plateia. Seu mural é uma monumental piada trompel'oeil: Diego e seus assistentes aparecem em cima de um andaime, entregues à tarefa de pintar o afresco de um operário no que parece ser a parede da própria escola. Como tantas imagensde trabalhadores naquela década em que havia pouco trabalho disponível, o herói de Rivera, protegido por um capacete, parece um cruzamento de Golias e um soldado raso, manejando as alavancas de comando de um futuro que seus olhos encaram com a significativa honestidade que caracteriza as imagens dos homens representativos da década de 1930. Embaixo do andaime, discutindo os planos arquitetônicos da escola de arte, estão Timothy Pflueger,William Gerstle e Arthur Brown Jr., o arquiteto da escola, os três usando terno e chapéu, o que os distingue dos artistas e do operário, que usam camisas com as mangas dobradas. Bem no centro do mural A fabricação de um afresco, o amplo traseiro de Rivera transborda do andaime enquanto ele contempla a pintura do homem de corpo mais rijo e mais saudável a quem pertence o futuro. Assim, de maneira irônica, Rivera instrui os estudantes de arte sobre a relação entre arte e revolução! Se sua chegada a São Francisco foi anunciada por certa indignação pública — "Rivera para a Cidade do México[249], para São Francisco o melhor de São Francisco", exigia uma manchete —, sua partida foi acompanhada por uma rajada de controvérsia. A reclamação do pintor Kenneth Callahan[250] é sintomática: "Muitos moradores de São Francisco", ele escreveu "preferem ver esse gesto [a visão do bumbum deRivera] como um insulto direto e premeditado. Se é uma piada, é bastante engraçada, mas de mau gosto". A mensagem social de Rivera não fomentou exatamente a revolução social, mas causou considerável comoção.Em 8 de junho de 1931, cinco dias depois de terminar o afresco, Frida e Diego voltaram para o México, para onde haviam sido convocados por carta e telegrama pelo presidente Ortiz Rubio, que estava ansioso para que Rivera concluísse o mural que havia começado a pintar na escadaria do Palácio Nacional. O casal ficou na casa azul de Coyoacán, enquanto Diego, com o dinheiro pago pelos patronos norte-americanos, começou a construir a nova casa (as duas casas separadas unidas por uma ponte) no distrito residencial de San Ángel, na Cidade do México (uma fotografia de 1932 mostra os dois com o cineasta russo Sergei Eisenstein, que estava no México filmando seu épico ¡Qué viva Mexico!, nos degraus do pátio em Coyoacán). Uma semana depois de voltar para o México, Frida escreveu para o dr. Eloesser:Coyoacán, 14 de junho de 1931Querido Doutor:Você não pode imaginar a dor que sentimos por não ver você antes de virmos pra cá, mas foi impossível. Telefonei três vezes para seu consultório, mas não o encontrei e ninguém atendeu, então deixei recado com Clifford [Wight], pedindo que me fizesse o favor de te dar uma explicação. Também, imagine, na véspera do dia de virmos embora de São Francisco o Diego ficou pintando até a meia-noite, e não tivemos tempo pra nada. Então esta carta serve em primeiro lugar para pedir mil perdões e dizer que chegamos bem neste país de enchiladas e feijões fritos — o Diego já está trabalhando no palácio. Ele teve um probleminha na boca e além disso se sente muito cansado. Eu gostaria, se você escrever pra ele, que dissesse que é necessário, para a saúde dele, descansar um pouco, já que se ele continuar trabalhando desse jeito, vai morrer. Não diga que eu te contei que ele está trabalhando tanto, mas diga que você sabe e que é absolutamente necessário que ele descanse um pouco. Eu ficaria muito agradecida. O Diego não está feliz, já que sente falta da amizade e cordialidade do povo de São Francisco bem como da cidade em si, e agora ele não quer outra coisa a não ser voltar aos Estados Unidos pra pintar. Eu cheguei me sentindo muito bem, muito magrinha como sempre e entediada com tudo, mas me sinto muito melhor. Não sei como posso te pagar pelo meu tratamento e por todos os favores que você fez pra mim e pro Diego. Eu sei que a pior maneira seria com dinheiro, mas por maior que seja a minha gratidão, ela jamais conseguiria compensar sua bondade, então eu imploro que você seja bonzinho e me diga o quanto eu te devo, já que não pode imaginar a dor que me causou ter que vir embora sem ter te dado nada que fosse equivalente à sua generosidade. Em sua resposta à minha carta, me diga como você está, o que está fazendo, tudo e, por favor, mande meus cumprimentos a todos os seus amigos, especialmente Ralph e Ginette [Stackpole]. O México, como sempre, está desorganizado e ao deus-dará, a única coisa que conserva é a imensa beleza de sua terra e dos índios. Todo dia a feiura dos Estados Unidos rouba um pedaço, é uma coisa triste, mas as pessoas precisam comer e não se pode evitar que o peixe grande coma o pequeno. O Diego manda muitas saudações. Receba o afeto que você sabe que sinto por você. FriedaO casal Rivera não ficaria muito tempo no México: em julho, Frances Flynn Paine, negociadora de arte de Nova York, conselheira de arte dos Rockefeller e membro do conselho diretivo da Associação Mexicana de Artes, esteve no país para convidar Diego para uma mostra retrospectiva no emplumado Museu de Arte Moderna de Nova York. Durante os regimes conservadores de Calles e seus sucessores, o entusiasmo pelo intercâmbio cultural andara de mãos dadas com a melhoria nas relações entre Estados Unidos e México. Um dos resultados foi a Associação Mexicana de Artes, criada na casa de Manhattan de John D. Rockefeller Jr., com o intuito de "promover a amizade[251] entre o povo do México e dos Estados Unidos, estimulando as relações culturais e o intercâmbio das belas-artes e das artes aplicadas". Foi Rockefeller quem doou o dinheiro que financiou a fundação da instituição. Seu cunhado, o banqueiro nova-iorquino Winthrop W. Aldrich, era o presidente da Associação (provavelmente não é coincidência que as duas famílias, Rockefeller e Aldrich, fossem donas de vastas terras e propriedades na América Latina). Se Rivera era bom o bastante para a administração, a associação concluiu, era bom o bastante para o capitalismo. "Quem está pintando é a própria coluna vertebral de Diego[252], não a política", alegou a sra. Paine no ensaio que escreveu para o catálogo da exposição de Rivera. Certamente, Diego não tinha como resistir à honraria de uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna — mostra que seria a segunda exposição individual de um artista (a primeira fora de Matisse) e a décima quarta exposição do museu. Mais uma vez, ele deixou inconclusos os murais do Palácio Nacional, e, na madrugada de um dia de meados de novembro, ele e Frida, acompanhados da sra. Paine e do fiel gesseiro-estucador de Rivera, Ramón Alva, adentraram a enseada de Nova York a bordo do Morro Castle. Diego estava no convés[253], com seu habitual entusiasmo efervescente. Acenava os braços, apontando para a beleza das luzes dos arranha-céus de Manhattan, as glórias da névoa, o sol nascente, os barcos rebocadores, as balsas, os rebitadores trabalhando no cais. De seu charuto de sete polegadas subia um filete de fumaça que se dobrava sobre a aba larga de seu sombreiro marrom. Seu sorriso, como sempre, era genial; suas maneiras, gentis. O recém-chegado anunciou ao repórter do jornal New York Herald Tribune que subira a bordo para entrevistá-lo: "Não existe um único motivo no mundo para que uma pessoa nascida em nossos dois continentes deva ir para a Europa em busca de inspiração ou para estudar. Está tudo aqui — a força, o poder, a energia, a tristeza, a glória, a juventude de nossas terras"; e admirando o edifício Equitable, na baixa Manhattan, um mastodonte que se erguia quarenta andares acima da linha dos outros prédios (e um dos prédios que suscitou a lei de zoneamento de 1916, exigindo limites de altura para os arranha-céus), ele pronunciou: "Aqui estamos na nossa própria terra, pois, soubessem disso ou não, os arquitetos foram inspirados pelo mesmo sentimento que levou o antigo povo de Yucatán a construir seus templos". Rivera desempenhava ao máximo o papel de embaixador cultural do Sul. Os povos da América do Norte e da América do Sul são um único povo, jovem e vital, ele disse. Uma nova e harmoniosa era daria ensejo a uma nova expressão americana na arte: "Estamos todos lutando para obter a perfeição — todos nós, em todas as classes. Sinto que por meio da colaboração nosso esforço será bem-sucedido".Enquanto o navio ia se aproximando do cais, Rivera agitava desvairadamente o chapéu, saudando um grupo de amigos e um verdadeiro comitê de boas-vindas que o esperava no píer. Lá estavam A. Conger Goodyear, presidente do Museu de Arte Moderna, homem gentil e de cabelos brancos que se tornaria amigo íntimo de Frida; dois homens que Rivera conhecera em Moscou em 1928 — Jere Abbot, diretor associado do museu, e o jovem e brilhante diretor da instituição, Alfred H. Barr, que, uma década depois, visitaria o estúdio de Frida em Coyoacán e daria à anfitriã a enorme satisfação de lançar um olhar de aprovação tanto para sua obra como para sua pessoa. Clifford Wight e outros assistentes de Rivera em São Francisco também estavam lá.Depois de deixar suas bagagens em um apartamento no Hotel Barbizon-Plaza, na Sexta Avenida com o Central Park Sul, Frida e Diego foram imediatamente para o edifício Heckscher, na rua 52 com a Quinta Avenida, onde na época ficava o Museu de Arte Moderna. Lá inspecionaram as galerias que em breve estariam repletas das pinturas de Rivera e o estúdio que havia sido montado e equipado para ele em um dos andares superiores do edifício. Ali Rivera trabalharia contra o relógio: ele dispunha de pouco mais de um mês para preparar a mostra, que teria 143 pinturas, aquarelas, desenhos e mais sete painéis em afresco móveis, três dos quais seriam composições novas, baseadas em suas observações deManhattan. Embora Rivera trabalhasse dia e noite, parando apenas para o ocasional copo de leite, reservava tempo para bancar o "leão social", e ele e Frida foram homenageados em uma sucessão de festas e recepções. Por intermédio da sra. Paine, eles conheceram nova-iorquinos poderosíssimos do mundo das finanças e do mundo das artes. A sra. John D. Rockefeller (nascida Abby Aldrich), por exemplo, tornou-se amiga, benfeitora e cliente de Rivera. Elauma vez pediu[254] que Diego pintasse em sua sala de jantar uma versão de Noite dos ricos, painel em afresco do prédio do Ministério da Educação que mostrava John D. Rockefeller, J. P. Morgan e Henry Ford jantando tiras de papel do registrador de cotações da Bolsa, mas Rivera se recusou: embora concordasse que a ideia era divertida, sabia também que trivializava suas convicções políticas. Contudo, Rivera adorava suas "noites dos ricos". Háuma fotografia maravilhosamente engraçada dele em um jantar formal no University Club; é quase impossível diferenciar o pintor dos anfitriões — gordo, careca, bem-vestido, e nitidamente saboreando um lauto banquete."Naturalmente, Diego já está trabalhando e a cidade está tremendamente interessada nele e em mim também", Frida escreveu para o dr. Eloesser em 23 de novembro, "mas eu, como sempre, nada tenho a fazer a não ser olhar e ficar entediada durante algumas horas. Estes dias têm sido repletos de convites para a casa das pessoas 'certas' e estou bastante cansada, mas isso logo vai acabar e aos poucos vou poder sair por aí e fazer o que eu quiser."Lucienne e Suzanne Bloch, filhas do compositor suíço Ernest Bloch, conheceram Frida e Diego logo após a chegada do casal a Manhattan, em um banquete oferecido pelo patrono de Rivera, o sr. Charles Liebman, para sua irmã, a sra. Sigmund Stern. "Eu estava sentada ao lado de Diego"[255], Lucienne relembra. "Tomei posse dele e conversei sem parar com ele. Fiquei muito impressionada com a ideia de Diego de que as máquinas eram maravilhosas, pois todos os artistas que eu conhecia achavam as máquinas terríveis." Lucienne contou a Diego que tinha sido convidada para ser chefe do departamento de escultura da escola de Frank Lloyd Wright em Taliesin. "Wright é um lacaio dos capitalistas", disse Diego, "porque acredita em espalhar as pessoas." Lucienne ficou completamente absorvida por Diego, a pontode não enxergar mais ninguém, só que de vez em quando eu via Frida Rivera com aquela sobrancelha única que rasgava sua testa e suas lindas joias me olhando de cara feia. Depois do jantar, Frida veio até mim, me fuzilou com os olhos e disse: "Eu odeio você!". Fiquei muito impressionada. Esse foi meu primeiro contato com Frida, e eu a adorei. No jantar, ela achou que eu estava flertando com Diego.No dia seguinte, Lucienne foi ao estúdio de Rivera e começou a trabalhar como assistente dele. Assim que percebeu que Lucienne não estava tentando seduzir seu marido, mas apenas adorava a amplitude e exuberância de sua personalidade, as duas tornaram-se amigas íntimas (anos depois, quando Lucienne, que se casou com Stephen Dimitroff, outro dos assistentes de Rivera, teve um filho, escolheu Frida como madrinha).As impressões que Frida teve de Nova York estão registradas em outra carta (26 de novembro) para o dr. Eloesser: A alta sociedade daqui me deixa muito desanimada, e sinto um pouco de raiva destes ricos daqui, já que vi milhares de pessoas na mais terrível miséria sem nada pra comer e sem lugar pra dormir, que é o que mais me impressionou aqui, é horrível ver os ricos dando festas dia e noite enquanto milhares e milhares de pessoas morrem de fome. [...] Embora eu esteja muito interessada em todo o desenvolvimento industrial e mecânico dos Estados Unidos, acho que os norte-americanos não têm um pingo de sensibilidade e bom gosto. Eles vivem como se estivessem num enorme galinheiro, sujo e desconfortável. As casas parecem fornos de pão e todo o conforto sobre o qual eles vivem tagarelando é um mito. Não sei se estou enganada, mas estou apenas te contando o que eu sinto.Por causa da timidez e da antipatia pela sociedade gringa, Frida ficou grudada em Diego durante a abertura da exposição no Museu de Arte Moderna, em 22 de dezembro, apesar da presença de amigas como Lucienne Bloch e Anita Brenner. O vernissage foi um grande evento social, uma reunião da elite de Manhattan, prestigiada por figurões como John D. e Abby Rockefeller e gente sofisticada do mundo das artes, como Frank Crowninshield, além, é óbvio, dos funcionários, conselheiros e benfeitores do museu. Os convidados beberam e conversaram alegremente tendo ao fundo o cenário mexicano criado por Rivera; o brilho social e a ostentação da alta alfaiataria contrastavam de forma gritante com a pièce de resistance da exposição, o grupo de recém-concluídos painéis em afresco mostrando a visão marxista que Rivera tinha do México: Zapata, líder camponês, A libertação do peão e Cana-de-açúcar, que retratam trabalhadores oprimidos pelos latifundiários (três outros painéis, retratando a visão de Rivera do proletariado urbano, incluindo Bens congelados, não ficaram prontos a tempo para a abertura da mostra, e foram adicionados à retrospectiva dias depois). Contraste igualmente gritante com a multidão reunida de patronos e patronesses da arte, os homens ostentando elegantes trajes a rigor, as mulheres pavoneando-se em pálidos e longuíssimos vestidos, era Frida Kahlo — a pele cor de oliva, quase trigueira, e extraordinariamente exótica em seus coloridos e vistosos ornatos tehuanos — de pé, em silêncio, ao lado de Rivera, protegida pelo corpanzil do marido. A mostra de Rivera não apenas recebeu a aclamação da crítica como também atraiu o maior público já presente a uma exposição em toda a história do Museu de Arte Moderna até então. Em 27 de janeiro de 1932, quando a retrospectiva chegou ao fim, 56.757 pessoas haviam pago ingresso para ver a obra de Rivera, e o decano dos críticos de arte de Nova York, Henry McBride, descreveu o artista como o "homem de quem mais se fala deste lado do Atlântico". Sem dúvida, o sucesso da exposição de Rivera tornou mais divertida a vida de Frida em Nova York. Ela conheceu muitas pessoas, e, na companhia dos novos amigos, explorava Manhattan, deleitava-se com demorados almoços, e ia ao cinema — gostava preferencialmente de filmes de terror e comédias dos irmãos Marx, de O Gordo e o Magro e dos Três Patetas. "Almoçamos com Frieda[256] no Reuben's e nos divertimos a valer juntas",escreveu Lucienne Bloch em seu diário. "Depois fomos assistir a Frankenstein, que Frida quis ver de novo." Outra coisa que alegrava os dias de Frida era o fato de que Rivera não estava mais trabalhando para cumprir um prazo e assim podia passar mais tempo com ela. "Almoço delicioso no Speakeasy com Diego Rivera e a esposa"[257], escreveu Lucienne, que anotou que "Frieda não suporta o Hotel Barbizon-Plaza porque os ascensoristas a desprezam e a tratam com desdém, pois veem que ela não é uma pessoa rica. Outro dia ela chamou um deles de filho da puta e nos perguntou se era o termo correto." Quando a estada dos Rivera em Nova York estava chegando ao fim, Frida já não era a criatura reclusa e tímida que fora quando chegou à cidade. Embora ainda se queixasse de vários aspectos da Gringolândia, ela agora estava enredada numa vida ativa e glamorosa. Em 31 de março, por exemplo, o casal Rivera, juntamente com um vagão-leito abarrotado de nova-iorquinos sedentos de cultura, viajou para a Filadélfia a fim de assistir à estreia do balémexicano h.p., com condução de Leopold Stokowski. A reação de Frida foi ao mesmo tempo sem rodeios e descarada. Cerca de um mês depois, ela pôs por escrito em carta ao dr. Eloesser o que não hesitara em dizer na hora:Quanto ao que você me pergunta sobre o balé[258] de Carlos Chávez e Diego. Resultou em uma porquería, com P de... [...], não por causa da música ou do cenário, mas por causa da coreografia, já que era um bando de loiras insípidas fingindo que eram índias de Tehuantepec, e quando tinham de dançar a zandunga parecia que tinham chumbo nas veias em vez de sangue. Para resumir, uma pura e total cochinada [porcalhada].

Frida Kahlo: a biografiaOnde histórias criam vida. Descubra agora