Tudo estava em perfeito silêncio a não ser pelo quase inaudível som da garoa fina que caia contínua lá fora. O dia preguiçosamente despertava, singelo e mau humorado. Mas dentro daquele quarto, escuro e úmido, a menina que estava deitada na grande cama de madeira pinho com lindos entalhes vitorianos, aquecida por aqueles lençóis cor de vinho no centro do quarto, ainda estava presa no mundo dos sonhos... ou será que eram dos pesadelos?
"Eu caia, caia, e caia novamente naquela escuridão. Não sabia como havia parado ali: em um instante eu estava por sobre um céu azul que me acolhia, e no outro eu estava a despencar por um abismo negro assustador. Onde esse imenso buraco iria dar? Será que eu iria morrer ao chegar ao seu fim? Estremeci com as perguntas rondando a minha cabeça.
O pijama de algodão branco balançava delicadamente no ar — era um tecido muito fino, e eu estava morrendo de frio por conta do vento que cortava meu corpo.A queda continuou, e curiosamente vários pontos brilhantes começaram a se iluminar no fundo do abismo, quanto mais eu me aproximava do fundo, mais eu podia ver o brilho. Se assemelhava a um céu estrelado... era muito bonito. Foi questão de segundos até eu perceber que aquele brilho na verdade era o reflexo da luz nas águas do mar. Conforme o meu ser se aproximava mais e mais daquele buraco negro, a queda se encurtava e logo eu chegaria ao meu destino final — nos céus, buracos negros absorviam espaçonaves para além do desconhecido e davam início a novas aventuras. Me pergunto o que aconteceria no fundo do mar.
Inspirei fundo e fechei os olhos com força, logo o meu corpo chocou-se violentamente com a água e, eu afundei. Segundos depois, abri meus olhos para aquele azul, o ar ainda nos pulmões. Me surpreendi ao ver uma barreira de corais coloridos. Olhei ao redor admirada, em pouco tempo alguns peixinhos travessos se aproximaram e começaram a passear em volta de mim. Por alguns instantes eu sorri, brincando com eles, mas, quando decidi voltar minha atenção novamente para o coral, percebi que ele não estava mais ali. Agora eu me encontrava em mar aberto e não havia mais vestígios daquele paraíso aquático... Só se via um azul sem fim para qualquer direção que se olhasse.
Vi algo se mexer naquelas águas turvas, e quando dei por mim, um peixe gigante surgiu ao meu lado. Ele tinha escamas acizentadas e em sua cabeça havia uma espécie de "chifre", onde na ponta do mesmo, havia uma luz. Parecia até uma espécie de lanterna que ele levava consigo para iluminar o seu caminho, enfim, eu nunca tinha visto algo assim antes.
O peixe continuou nadando calmamente com aquela boca enfileirada de dentes afiados e assustadores, só depois notei que ele caçava meus pobres peixinhos coloridos. Nessa distração, não percebi que o oxigênio tinha começado a desaparecer. Tentei chegar a superfície mas, não sei, simplesmente não conseguia, parecia que algo me puxava para baixo e, quando vi, realmente havia algo me prendendo: algas estavam sobre os meus pés, me puxando mais e mais para o fundo. Me desesperei, eu não queria morrer! Onde estava minha mãe?! Meu Pai?! Eu queria sair dali!— Fique comigo — De repente ouvi uma voz sussurrar. —, prometo que a gente vai se divertir bastante! — Continuou, rindo. — Fique comigo!
E eu fui puxada cada vez mais para o fundo. "Não! Por favor, por favor!" pedia mentalmente enquanto tentava inutilmente nadar para a superfície.
— Fique comigo..."
— Ib? Ib, meu amor, acorde!
Uma voz doce e familiar se sobrepôs sobre os ouvidos da menina. Ib abriu os olhos assustada e se sentou na cama, sua respiração estava desregular e seu coração batia forte. Procurando ao redor, seus olhos castanho-avermelhados se depararam com outros dois pares da mesma cor.
— Mãe! — Chamou, abraçando-a apressadamente.
— Teve um pesadelo? — A mulher perguntou preocupada.
Ib assentiu afirmativamente, embalada nos braços da mulher.
— Oh, meu bem! Não fique assim, já passou — Disse reconfortando-a. — Vamos lá, você já é uma mocinha!
— Eles continuam sendo assustadores do mesmo jeito... — Ib retrucou, se soltando do abraço e encarando a mulher.
As duas eram bem parecidas, Ib tinha a pele clara e seus cabelos eram castanhos assim como os da mãe, entretanto, os cabelos da mais velha batiam nos ombros e continham singelos cachos no comprimento, o que era totalmente diferente das madeixas de Ib, que eram lisas e caiam até o meio de suas costas.
Ib herdou da parte materna da família uma das características mais marcantes e exóticas: os olhos castanho-avermelhados; de um rubro tão vívido que se contrastados com a luz, pensava-se que chegavam ao tom vermelho-sangue! Era lindo e assustador.— Feliz aniversário! — Disse a mãe de Ib, pegando um embrulho na ponta da cama e entregando a menina. — Aqui está! Um presente à altura de suas responsabilidades!
Ib olhou para o pacote curiosa. Ela não sabia se havia entendido bem o que sua mãe quis dizer com tais palavras, no entanto, começou a rasgar o pequeno embrulho a procura do tal presente.
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Com o chegar da tarde, o céu se aquietou. Ib estava debruçada sobre uma das janelas de sua casa, olhando pensativa para a imensidão sem cor. A garota tentava não sujar o belo traje a rigor que estava vestindo: uma camiseta social branca com um elegante lenço vermelho no colarinho, uma saia vermelha de linho e algodão e um par de meias pretas que fazia o conjunto perfeito com o sapatinho social marrom-avermelhado. Eram ordens superiores, e ela não queria aborrece-la.
— Ib!? Vamos! — Gritou sua mãe do andar de baixo.
Ib correu em direção a saída da casa.
— Já está na hora? — Perguntou intrigada ao chegar ao pé da escada.
— Sim minha querida, já estamos de saída... Você se lembrou de tudo?
A menina assentiu afirmativamente.
— Ótimo... Estamos prontas, querido.
Ib fitou curiosa os dois pombinhos: sua mãe alisava o terno azul cobalto do marido com ternura e brilho no olhar, ela perecia admirar os cabelos castanhos e se perder na noite escura que eram os olhos do amado — que aliás, não se cansavam de vislumbrá-la. O pai de Ib parecia totalmente hipnotizado pela beleza de sua esposa, ela estava completamente estonteante: o traje social vermelho-vinho havia caído como uma luva em seu corpo, e os cachos do penteado chique estavam devidamente alinhados e sedosos. Os dois se encaravam intensamente, era como se só ambos existissem. Havia um carinho e respeito tão profundo naqueles olhares, era uma verdadeira confidência. Ib foi incapaz de desviar o olhar.
— Cahãm... vamos? — Perguntou o homem, saindo da pequena bolha que havia se formado entre os dois.
Ib riu e assentiu afirmativamente. Seu pai então abriu a porta e saiu, indo na vanguarda. Sua mãe estava para o seguir quando, como se pensasse duas vezes, parou e olhou para a menina.
— Você está com seu lenço de linho, Ib? Sabe, o que você ganhou de aniversário.
— Sim, estou...
— Mantenha-o seguro, okay? Não o perca! — Disse sorrindo e saindo logo em seguida.
Ib não entendeu muito bem o motivo de tudo aquilo, mas faria o que ela pediu.
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— Bem, estamos aqui... essa é a sua primeira vez em uma galeria de arte, não é mesmo, Ib? — Perguntou, olhando o ambiente e depois fixando seu olhar na filha.