A Cidadã 114 - Patricia

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Patricia levantou-se impaciente do sofá, pensando em sair de casa. Não tinha muito que fazer na rua, mas até aí em casa havia menos ainda. Saiu pela porta emperrada que a separava da rua e sentiu que o clima estava ligeiramente frio. Num planeta Terra cujo clima era totalmente imprevisível, era necessário levar blusa em qualquer lugar, mesmo que estivesse uma tarde ensolarada. A jovem de longos cabelos avermelhados usava botas até a altura do joelho, uma saia esverdeada e camiseta preta, visual completado pela jaqueta amarela que vestiu enquanto ia até o banheiro se olhar no espelho.

O espelho quadrado e largo refletia um rosto de olhar indetectável, escondido pelos óculos azulados que mais pareciam um equipamento de realidade virtual ou algo do tipo. Pegou um batom igualmente azul e passou na boca, completando o visual chamativo.

Sabia que, em alguns lugares poderia atrair todos os olhares do mundo com tantas cores, mas ali onde vivia, era só mais uma. Morava em algum lugar da Europa que agora já não tinha fronteiras nem nações definidas. Dois séculos antes de Patricia nascer, o planeta azul havia sido acometido por uma catástrofe ambiental que forçou a mudança de vários humanos para outros lugares, em especial um planeta chamado Barimox, habitado por répteis que tinham um modo de sociedade parecido com os humanos.

Numa sociedade em que todas as pessoas eram problemáticas e de vida difícil, o visual que usava era a última coisa que iria importar. O que importava na comunidade que Patricia vivia era o trabalho que cada um podia oferecer ao outro, num altruísmo que parecia utópico numa cidade tão castigada pelo tempo – era como se um ato de bondade ou irmandade não combinasse com um lugar de prédios cinzentos e paisagem chuvosa. As luzes dos prédios à noite formavam uma beleza que soava até irônica.

A jovem caminhou pela rua estreita, porém movimentada e entrou num mercado com prateleiras quase vazias. Era final de semana e os novos produtos só entrariam dali a dois dias, o que era bem ruim para Patricia – tinha quase nada na despensa de casa. De qualquer forma, estava ali para trabalhar. Cuidava dos computadores do mercado, fazendo pequenas manutenções e atualizações nas máquinas.

Estendeu a mão direita e começou a digitar algumas coisas no teclado. Digitava com uma rapidez que faria qualquer pessoa espantar-se como não errava os comandos. Minutos se passaram. Um erro na tela. Como quem estava fazendo pouco ou nenhum esforço, corrigiu o mesmo.

- Pronto, está atualizado, senhor Mark. Se não puder pagar hoje eu passo outro dia.

- Não, eu vou pagar agora mesmo. Eu tenho só algumas notas pequenas, mas é o suficiente. – o dono do mercado era um velho de calça jeans e camisa xadrez, do tipo de pessoa que parecia nunca trocar de roupa.

- Tudo bem, se pagar menos eu não ligo porque nem foi muita coisa hoje.

- Aqui, Patricia. Vinte steps. Não te pago em comida porque não tenho nada do seu gosto no mercado. Quem sabe semana que vem.

- Haha, tudo bem. Quando precisar me chame.

A vida da jovem se resumia a isso: fazer pequenos serviços em troca de alguns steps, a moeda local criada pela comunidade em que vivia. Se desse para comer, comprar o básico para sua casa e ainda conseguir alguma diversão barata – álcool e sexo, geralmente as duas coisas combinadas – então estava tudo bem.

Na realidade, nem acreditava que conseguia ter uma vida tão simples depois de tudo. Fora sequestrada por um misterioso cientista de nome Takizawa e tivera sua memória praticamente limpa. Ainda lembrava seu primeiro nome e seus talentos – informática sempre estivera na sua cabeça -, porém tinha pouca ou nenhuma ideia de quem era. Praticamente como uma máquina formatada que tivera um sistema novo instalado.

Olhou-se no vidro de um comércio qualquer da rua e viu a inscrição PAT-114 no pescoço. Era uma espécie de tatuagem feita à mão, na grafia de alguém que tinha uma letra bem ruim. Olhou o braço mecânico praticamente escondido por baixo da jaqueta e pensou que, se não fosse por ele e pela tatuagem, nunca iria lembrar que era uma ciborgue, uma humana modificada em laboratório.

A Cidadã 114Where stories live. Discover now