-Dona Ana! -Chamava Raneco, subindo a escadaria. -Dona Ana, olha o bagaço achei. É um... -Parou logo na entrada ao ver a dona de casa estática no chão do quarto com as costas apoiadas no guarda-roupas.
-Tá tudo bem?
Ela entregou, calada, ambas as fotos nas mãos do jardineiro.
-Que que tem, dona?
-Que tem? Pensa um pouco... ou será que tu é tão tanso assim? Essa guriazinha pequena da foto é a Ulda. Não sabe, não? A Ulda e o Fermiano abraçados com essa jararaca. E mais: eu não sabia que o Fermiano era tão aqui com o Padre Joaquim.
-Não deve ter tanta importância.
-Ah, não deve? Olha, Raneco, eu sempre confiei na Ulda. Na Madalena, nunca vou conseguir. Agora, no Fermiano, não sei se dá pra confiar mais, não.
Erguendo-se, passou pela porta antes de apoiar ambos o braços nas estruturas de madeira que serviam como proteção.
-Mas me diz. Que que tu ia me falar.
-Dá uma olhada nesse documento. -Disse ele se aproximando de Ana Maria, lhe entregando o fragmento. -É um alvará de um hospital lá de São José do Oeste. Olha, aqui diz que o tal hospital tá no nome de Fermiano Pérez Gonçalves e de Madalena Alves dos Santos.
-Misericórdia. Tu tá querendo me fazer na esparrela? Só tô falando.
-Já disse que não, dona. Olha, se eu fosse tu, ia a pé se precisasse, mas ia nesse tal hospital. Se o Fermiano tá te passando a perna, ele deve tá lá naquele fim de mundo fazendo sei lá o quê.
-Não consigo. Tenho coragem de ir muito longe da Vila, não. Nunca sai daqui.
-A dona que sabe. Vai pra casa e pensa um pouco. Amanhã me dá a resposta. Pra ser sincero, tu devia ir atrás do homem. Mas é da tua conta, dona. -Finalizou descendo as escadas, enquanto ela fixava um ponto fixo no chão do primeiro andar.
***
Amanheceu. O crepúsculo nascente secava aos poucos o orvalho abundante nos campos da Vila ao mesmo tempo em que batia ardente nas paredes amadeiradas da casa de Ana Maria, que dormia um sono profundo. Sono este interrompido pela chamada do telefone fixo na sala. Ela ergueu-se bruscamente, calçou as pantufas, desceu as escadas, se dirigindo até o telefone fixo, que se encontrava em uma pequena mesa de vidro arredondada no meio da sala. Recostou-se tomando o aparelho em mãos.
-Pronto? Sou eu mesmo. Pois não?
A mulher dilatou as pupilas, enquanto transpirava abundantemente. Lágrimas corriam de seus olhos até a boca. Largou imediatamente o telefone, saindo atordoada pelo quintal de casa. Encostou-se na parede exterior da casa fixando um olhar úmido ao redor. Encostando-se na parede exterior da casa, foi escorregando, escorregando, até cair sentada no chão.
-Dona?! -Aproximava-se Raneco. -Dona Ana!
Ela pranteou balançando pesarosamente a cabeça.
-O Fermiano... Ele morreu... -Revelou levando ambas as mãos ao rosto.
-Morreu?! Morreu como, dona?
-Acharam ele em um terreno aqui perto com... com um golpe na... na cabeça.O jardineiro se ajoelhou na grama, abraçando a viúva molhada entre prantos.
***
Ela caminhou entre a multidão no cemitério, aproximando-se do cadáver pálido cercado de uma flora diversa e coberto por uma rede de linho na altura da cabeça. Passeou a mão direita pelo seu rosto antes de pausar em seus lábios, tão pálidos quanto o cal das paredes que revestiam os casebres funerários em sua maioria.
-Sabe, Ana Maria. -Começou a voz soluçante de Dona Anita atrás da nora. -Uma pessoa pode ter a melhor das intenções. Pode parecer inocente, mas mesmo assim ter sangue nas mãos.
A viúva virou-se rapidamente.
-Olha aqui, dona Anita, o Fermiano não é só da tua família, não. Eu não me conformo com a senhora vindo aqui e jogando a culpa pra cima de mim!
-Quem disse que a culpa era tua, ora? Tu nem me avisou de nada!
-Não consegui pensar em nada na hora. Me deixa quieta, Anita!
-Eu achei que tinha achado uma nora de verdade. Mas o que esperar de um ninfetinha que não. Liga nem quando a irmã bate as botas.
-Escuta aqui! -Repreendeu pegando no braço da dondoca. -Dobra a tua língua pra falar da Ulda!
-Me solta! Quem deve calar a boca é tu, sua maltrapilha! Tu não tem nem família mais. Depende da gente pra tudo.
-Foi por isso que me casei com o mimadinho do teu filho. Eu fui uma mulher ruim, não é?! Acha que ele foi um bom marido? Foi tão ruim quando eu estou sendo agora para a senhora. Se é pra eu. Ele vai na frente que eu vou depois.
O comentário da nora foi finalizado por um tabefe no lado do rosto de Ana Maria, que revidou com um soco no nariz da sogra, fazendo-a cair para atrás.
-Tu vai se arrepender. E muito! -Exclamou a sogra se erguendo, ao mesmo em sentia o sangue escorrendo de seu nariz.
Em meio a exclamações e risos, um velho corcunda, vestido em remendos mal cortados, segurando uma espátula e arrastando um carro-de-mão carregando de tijolos se aproximou da cova. Colocaram o barril de diante dele ao mesmo tempo em que o defunto era depositado na cova vertical.
-Pode tapar? -Perguntou sendo respondido por um dos funcionários da funerária vestido em preto e branco.
O coveiro grudou os tijolos em argamassa, rebocando a parede logo em seguida.
Ana Maria observava o espetáculo com lágrimas nos olhos, recordando-se do tabefe dado por seu marido.
***
-Eu quero ir contigo. Te ofereço o carro. -Clamav Ana maria para Raneco que jazia recostado à mesa.
-Sabia que a dona ia tomar a decisão.
-Tô fazendo isso por mim. A polícia daqui é uma caçamba de lixo. Nem sei como, mas eu vou atrás da Madalena. Vou te falar uma coisa. Eu posso até ser presa, mas eu mato aquela cambacica!
-Dona...
-Mato mesmo! -Frisou apontando o indicador na face do jardineiro.
Ele aquietou-se, suspirando ao mesmo tempo em que fixava um ponto indeterminadona mesa e assentia.
-A dona tem toda a razão.
-Não quero a tua razão, Raneco. Não preciso da tua razão. Eu já sei que eu tô coma razão.
-A dona que sabe. Mas eu que não me meto nisso, não.
-Pode não querer se meter, mas e ai? Vai me levar pra São João?
-Promessa é dívida, não é dona?
-Ótimo!
Ela ergueu-se, desaparecendo escada a cima e voltando com a chave do veículo em mãos.
***
O veículo movimentava-se em meio aos edifícios do centro da cidade, úmida pelas pancadas de chuva. O clima nebuloso dava à cidade uma atmosfera soturna, itensificada pelo agito de pessoas caminhando em ritmo acelerado pelas ruas junto com sons de buzinas constantes dos automóveis em congestionamentos curtos no trânsito, marcado pelas estradas montadas de paralelepipedos.
No banco dianteiro, ao lado do morotista, Ana Maria observava a todo aquele caos urbano.
-Falta muito?
-Falta umas três léguas, dona.
O veículo adentrou em uma rua secundária a direita da avenida principal.
Os paralelepipedos iam dando lugar à terra e cascalho. E os edifícios e domicílios iam rareando aos poucos.
O veículo parou ao lado de um hospital vazio e abandonado. O estado deplorável da institiçao a assustou. Um enorme edifício branco repleto de rachaduras, buracos no telhado e vidros estilhaçados.
-Tu tá é doido! Não é aqui! Olha esse negócio! Tá abandonado. Não entro aí de jeito nenhum.
-Estranho mesmo, dona. Mas o alvará nos trouxe aqui. Se dona não entra, eu mesmo vou lá dar uma olhada e já volto.
O jardineiro abriu a porta, saltando do veículo e se dirigiu até a porta do estabelecimento. Empurrou com força. A tensão fez a porta ceder girar para dentro. Raneco desapareceu em meio às paredes descarnadas da instituição.
O tempo passava e Ana Maria permanecia no carro tomada de grande impaciência pela demora do jardineiro.
Ela puxou a tranca, abrindo a porta do veículo e fechando-a em seguida após o salto, analisando de cima baixo o edíficio.
Adentrou no estabelecimento. Analisou as paredes rachadas e a escada de piso para os demai andares. O que deveria ter sido a sala de espera no passado, era limitado por um corredor. com as possíveis salas clínicas do precário hospital.
-Raneco! -Berrava constantemente, subindo a escadaria.
Foi até o terceiro andar, clamando pelo nome jardineiro.
-Raneco! -Repetia forçadamente, adentrando em um corredor.
Ao chegar ao final do corredor, uma cratera protegida por barras de ferro inferrujadas jazia no centro de um amplo espaço no andar.
-Ana Maria! -A voz feminina de Madalena gruniu, fazendo a dona de casa olhar para baixo. No fom de todas as escadas interligadas em círculos, havia o cadaver ensanguentado de raneco em cima de uma mesa de vidro estilhaçada.
A viúva ofegou levando as mãos úmidas ao rosto, retirando-as logo em seguida.
Rapidamente, alguém veio por detrás, cobrindo os lábios de Ana Maria com um lenço. O corpo da viúva amoleceu tombou para trás nos bracos de madalena.
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