A pior dos piores, a mais má de todos os males, o próprio rancor em pessoa e melhor cozinheira de todo o oeste, essa era Vovó Lulu. Vovó era muito bem dotada. Sua magia era temida por todos que a encontravam e sua torta de frango atraía tudo que sentia o cheiro da obra prima.
Claro, tudo que costumava se atrever a se aproximar do seu singelo chalé eram Trolls, já que ela atualmente residia numa floresta repleta daquelas pestes, mas recentemente nem eles mais.
Vovó só precisou dar uma lição nos primeiros para que eles aprendessem que ela era pequena, mas forte. Depois disso, eles esvaziaram o território ao redor dela por causa do "cheiro muito bom, ruim em resistir," o pequeno disse. Ela riu por horas quando ouviu a explicação, mas no fim pensou que era mesmo mais conveniente assim. Os Trolls tinham a mania de pisar constantemente no seu jardim e ela perdeu as contas de quantas vezes destruiu alguma árvore em frustração. Não que isso mudasse muita coisa, também. A floresta era densa, tanto que o vento não passava e nem nenhum som. Os dias da vovó eram silenciosos além da própria voz.
E ah, como ela falava. Talvez fosse a solitude variando a mente da velha senhora, talvez fosse o toque de loucura que todas as boas bruxas tinham. Fosse como fosse, qualquer animal que passasse pelo local ouviria a voz esganiçada de uma velhinha de avental, sempre fazendo alguma tarefa doméstica e reclamando de alguma dor da idade.
Isso mesmo, sua costas não andavam como antes, nem seus joelhos, muito menos sua visão. e Ah, mas como doía tudo, como ela queria um ajudante para lhe dar algum descanso. Ah, ela viveria no meio de alguma vila abastada, sim, e faria o sagrado papel de maldita feiticeira local, mas ela ainda tinha uma ótima fama ruim naquelas terras e ela não aguentava mais os intermináveis cavaleiros atrás de sua cabeça. Do mesmo modo, estava velha demais para qualquer viagem longa. Ah, pobre Vovó Lulu, quase se ressentia daquela vez na juventude que fez um dos muitos rituais para aumentar seu poder e perdeu a habilidade de ter filhos... mas apenas quase. Bastava pensar em crianças ranhentas que tal pensamento desaparecia como mágica. Vovó Lulu não era feita para ser mãe, não, não.
Estava mais uma vez lembrando em voz alta do passado, de uma torre e de um Dragão quando ouviu, de longe, uma voz conhecida.
"Vovó Lulu," o pequeno chamou, a uns metros de distância dela.
Ele tinha uns bons dois metros e quinze de altura, e sua pele cinza refletia a pouca luz que escapava das árvores.
Ele sempre era assim, muito cuidadoso quando chegava perto dela. Imaginava que fosse porque ele viu o que aconteceu com os os Trolls que a desrespeitaram.
Se o resto dos da sua espécie tinha o intelecto de uma porta emperrada que só abre ou fecha com uma boa bengalada, ele era uma porta perfeitamente funcional. Vovó o achava muito interessante para um Troll. Quem diria que algum deles poderia ter algo que lembrava inteligência! Por isso, ela aceitava de bom grado sua presença quando ele vinha trocar alguma das suas bugigangas por um pedaço das suas tortas, fossem elas o que fossem. Ela tinha feito uma aposta consigo mesma de quanto tempo aquele pequeno duraria, afinal.
"Veio trocar mais alguma coisa, pequeno? Faz um tempo que não vem, achei que tinha finalmente morrido," sua voz era rouca e sua mão era calma, indicando que ele se aproximasse da entrada, onde ela estava sentada.
Ele continuou lentamente pelo caminho de terra, evitando suas plantas com cuidado. Troll esperto.
"Jö não morre," ele respondeu com o mesmo rosto inexpressivo de sempre.
Ela riu.
"Parece que não," e a velha observou enquanto ele tirava um corpo do ombro e o punha na frente deles dois, "Pequeno, eu já disse que não tenho utilidade para mortos. Porque não me trouxe apenas seus pertences?"
O morto se mexeu, como se para mostrar o erro da velha senhora. O troll se abaixou, envolvendo os ombros do homem e forçando-o no lugar. Então vivo.
Os olhos da bruxa brilharam.
"Me deixe Troll! Não devia ter confiado, é uma bruxa!"
O homem... não, adolescente, devia ter pouco menos de um metro e meio, como ela. Era escuro, com rosto delicado, cachos longos e roupas de plebeu, ensanguentadas. Os olhos brilhavam violeta. A bruxa não precisou de uma visão boa para saber o que aquele ali era. Mestiço.
"Quieto," a voz grave do Troll soou, mas as mãos do outro começaram a vibrar magia mesmo assim.
O pequeno se alarmou com a luz violeta e ele puxou o miúdo para si, impedindo que ele se mexesse. O mestiço gemeu de dor, e isso foi o suficiente para fazer suas mãos acalmarem.
"O que é isso, Troll? Trouxe esse aí como ingrediente?" Ela soava divertida.
Não tinha nenhum ritual com mestiço em mente, mas assim como as bugigangas que ele lhe trazia, o trocaria por comida mesmo assim. Estava até surpresa, na verdade. Não imaginava que o Troll seria esperto o suficiente para saber que aqueles tipos eram úteis para bruxas.
Sua surpresa só aumentou quando ele lhe respondeu:
"Não," e podia ser uma ilusão da sua visão ruim, mas seu rosto inexpressivo adotou um teor resoluto, "trouxe para curar."
Um silêncio se instalou, e até o miúdo nos braços dele se aquietou.
Ela o avaliou.
"Porque?" Lentamente se levantou do seu banco, com a ajuda da sua bengala.
Nada no pequeno mudou quando ele respondeu:
"Você diz: 'Preciso de ajudante'. Esse tem magia, mas está ruim. Cura ele e faz ajudante. Achei boa troca," explicou. Eram muitas palavras para um troll e fazia sentido demais. Parecia que ele era mais esperto do que Vovó Lulu imaginava.
Seus olhos esbranquiçados continuaram avaliando os dois. Apesar da inteligência do pequeno ser uma surpresa, não era isso que a confundia.
"Sim, mas porque? Porque você quer esse aí vivo?" Porque Trolls não eram conhecidos pela sua benevolência, gentileza ou quociente emocional. Qual a diferença nesse caso?
Ele pareceu confuso, por um momento, e seus braços afrouxaram o aperto no miúdo.
"Pequeno. Muito pequeno. Tudo cresce. Com um pouco de tempo vivo, esse cresce também e fica forte," explicou.
Ela se divertiu mais uma vez. Seria aquilo empatia? O Troll havia adquirido a habilidade de se pôr no lugares de outros? Interessante.
"Mas no que isso lhe ajuda? No que a força desse daí te afeta? Pelo que eu sei, quanto mais forte o povo alheio, pior é para os do seu tipo. Vocês não são muito bem vistos pelo mundo afora," ela argumentou, "Especialmente para mestiços."
Ele olhou para baixo e o miúdo também o encarou nos olhos, estranhamente claros para seu estado. Pareceu lembrar de algo.
"Esse é de ninguém. Está sozinho."
"Então você quer adquirir aliados? É isso? Isso é muito esperto para um Troll," ela se aproximou.
Ele lhe pregou outra surpresa quando, depois de um tempo, perguntou:
"O que é aliado?" Ela parou seus passos vagarosos, com olhos arregalados, e começou a rir.
"Você é mesmo um mistério, pequeno. Não achei que encontraria algo tão interessante nesse fim de mundo, mas aqui está você," ela chegou na frente dele, sua enorme sombra engolindo sua figura corcunda.
Ele era mesmo pequeno para um Troll, ela até conseguia ver seu rosto monstruoso!
Abanou a mão, para indicar que ele devia deixar o miúdo no chão. O Troll hesitou, mas fez como indicado e deu uns passos para trás.
A senhora avaliou o já meio morto mestiço. Daria algum trabalho para remenda-lo, mas bem.. Ela precisava mesmo de um ajudante. E mais que isso, ela estava curiosa de como o miúdo ia influenciar aquele já tão peculiar Troll. Será que ele faria ela perder sua aposta?
"Traga ele pra dentro," ordenou, " E espere. Acabei de colocar um ensopado no fogo."
E assim a troca com o Troll foi acertada, e a bruxa ganhou um novo residente na sua residência.

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Torres e Tradições
FantasyFábulas e convenções de contos de fadas se juntam num mundo de fantasia. Um príncipe sem qualidades? Uma princesa raptada por um dragão? Uma plebeia mágica? Uma rainha perfeita que se rebela? Tudo isso, e muito mais. [Uma leitura leve sobre históri...