Descontinuidade

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Sentado diante da escrivaninha, Eris pensou sobre a natureza do tempo. Seu mestre tinha lhe instruído – o tempo não existe para o Universo, é apenas uma percepção humana, um olhar inclinado pela perspectiva criada pela nossa maneira de estruturar o pensamento e a noção de identidade. Um pensamento complexo, profundo e o qual o jovem não tinha certeza se tinha entendido alguma coisa.

Largou a caneta e ajeitou os papéis em branco sem necessidade. Recostou-se na cadeira e seus olhos foram para a janela ampla do seu quarto. Os ruídos urbanos adentravam baixos, apesar de já passar das dez da manhã.

Dez horas. Existiam horas?

Levantou, inquieto e saiu para o restante da casa. Serviu um copo d'água e foi para a sacada. A vida transcorria como sempre, como em qualquer dia de semana, enquanto ele vivia aquela sua vida reclusa de estudioso.

Semana. Dias....

Seu mentor disse realmente muitas coisas para ele em relação ao tempo e lhe deu os livros para que estudasse aquelas questões. Eris tinha lido um deles e deixado o segundo pelo começo. As explicações cara a cara com o professor eram sempre mais claras do que qualquer texto acadêmico. Ainda assim, daquela vez, havia no rapaz uma necessidade de duvidar e repensar todas aquelas questões para decidir se as aceitaria.

Segundo a teoria, essa estranha métrica onde o tempo não existe no Universo, as coisas acontecem não porque o tempo passa, mas porque eventos se sucedem. A gravidade é um campo distorcido onde a entropia tende para uma crescente infinita....

Mas então, porque ele podia contar as horas, os dias e os anos? Ele não tinha afinal existido em uma sucessão inexorável do tempo?

A resposta era clara: não e sim.

O chão sob seus pés era quase exatamente o mesmo chão que pisara anos antes, para o chão o "tempo passar" era apenas uma degradação lenta das suas estruturas moleculares que, por fim, dali a anos ou séculos, faria com que ele retornasse a poeira de elementos. O evento de sua degradação acontecia numa velocidade completamente diferente da vida de Eris, ali parado sobre o tal chão.

Se Eris não tivesse memória, ele certamente não saberia da existência do tempo. Todos os dias seriam o único momento, o agora, e um agora apenas dele, totalmente diferente do agora de uma pessoa que estava atravessando a rua, ou dormindo do outro lado do mundo.

Era bastante simples: o que Eris sentia ser o tempo, na verdade era apenas sua percepção das mudanças que aconteciam ao seu redor. A noite vem depois do dia. Quando alguém começa a contar em voz alta, um número vem depois do outro, assim como o relógio brincava de girar seus ponteiros sem significado.

O sol se movia pelo céu, mas até aquilo era ilusão. É o mundo que se move ao redor do sol. Se então enxergávamos o sol se movendo, não poderia ser o tempo o mesmo tipo de ilusão?

Possivelmente.

Terminou o copo d'água e retornou para dentro de casa. Usou o lavabo e passou água gelada no rosto. Encarou sua imagem no espelho fosco. Aqueles seus olhos eram tão limitados, diante da complexidade da realidade, pensou. Era exatamente por isso que estudava com seu mentor. Por isso que ia aos debates na Universidade, por isso que lia aqueles livros e por isso que escrevia seus resumos e opiniões.

O mundo o fascinava no mais simples existir. No singelo passar do tempo. Esse mesmo, que sequer existia.

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