19 - Redenção

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Não conseguia compreender por que Samuel nos levou naquele lugar, por que ao invés disso, não nos levou para um lugar de paz e luz, onde pudéssemos recarregar nossas forças.     Ele era muito misterioso, não dizia as razões, só ia me guiando por um caminho ou por outro. Logo que chegamos ali me deu um arrepio tenebroso, uma aflição, uma agonia… me confundo até para tentar explicar, é uma sensação de não ter alma, como se eu fosse oca por dentro.

    Estávamos em um grupo e era perceptível que não era apenas Elohim e eu que tínhamos corpos físicos, pois nossa energia era diferente. Havia uns dez como nós e uns cinco como Samuel... mas quem desejaria participar de uma excursão para tão pavoroso local? Afinal que lugar era esse? Seria um inferno? Só podia ser!

    Comecei a passar mal, sentia muita ânsia, uma sensação de desmaio incontrolável e muito tremor, não conseguia nem pedir ajuda. Como um zumbi, fui sendo arrastada pela energia de Samuel. 

    Elohim parecia mais à vontade e em certo momento ele pegou minha mão para me ajudar a descer um daqueles barrancos lamacentos intermináveis. Foi então que notei que ele estava firme, como se ele estivesse muito são, sabendo lidar com tudo com uma energia transcendente.

    Olhei para Samuel como que pedindo um socorro, realmente não estava aguentando aquela energia tão pesada. Ela me consumia, eu ia acabar morrendo, mas nem poderia, pois não estava com meu corpo físico. 

    — Eu quero acordar! — Me deixa acordar! — eu pensava olhando para Samuel na tentativa de que ele ouvisse meu pensamento.

    Tentei lembrar da minha casa, respirar mais fundo, trazer a imagem do meu corpo na minha mente, qualquer coisa que me ligasse à realidade, na tentativa de que eu pudesse voltar para a matéria, mas algo me fazia ficar ali. 

    O que houve com o meu livre-arbítrio? Por que estou aqui? Quero voltar! Eu pensava quase que aos prantos. 

    Nós descemos e descemos mais naquele terreno que era sempre lamacento ou totalmente irregular.     

    Gritos, uivos, xingamentos e lamentos vinham de todas as partes, às vezes, até risadas sarcásticas se misturavam na confusão que se ouvia, mas eu não conseguia ver da onde vinham devido a escuridão. 

    Tentei me lembrar de uma oração que o Xamã havia feito em um dos seus contatos, me esforcei para repetí-la muitas vezes, como um mantra. 

    Eu não estava acostumada com oração e religião, era mais adepta do autoconhecimento, costumava dizer que o autoconhecimento era a minha religião. Mas naquele momento eu precisava de uma força superior.

    Aos poucos minha mente foi se firmando na forte energia da oração do Xamã, como que criando um escudo contra aquela densidade. Somente neste momento Samuel me deu alguma atenção, ele olhou para mim com um olhar de sabedoria e clareza, como quem diz: “Viu como você aprendeu sozinha!”

    Sei que não foi sozinha, sei que ele me intuiu, aliás, o tempo todo me senti amparada pela energia dele, se não fosse assim, eu teria me jogado no chão até alguém me resgatar. 

    Quando finalmente paramos de andar, estávamos em frente a uma pequena gruta,  fiquei então petrificada quando vi pela primeira vez um ser que vivia naquelas condições. E meu espanto aumentou mais ainda quando reconheci que era aquele mesmo ser animalesco que havia me perseguido desde a infância, sim, o mesmo que fez Elohim ir parar no isolamento ao tentar me defender.

    O ser estava no fundo da gruta amarrado como um cachorro e rosnava alto, a cena era de dar dó. Apesar dos sofrimentos e medos que eu sabia que ele sempre implantou em mim, naquele momento eu só conseguia enxergar nele um sofredor. 

    Seu aspecto de réptil com seus olhos humanos eram carregados de uma história cheia de dores e torturas, e não cabia a mim julgar, não fui vítima se o atraí. Eu só podia desejar a sua redenção.

    Pensei que eu deveria fazer algo, pois que haveria algum propósito neste encontro, mas logo vi que a tarefa não era minha. 

    Elohim estava com os olhos marejados mas mantendo aquele ar de clareza, consegui perceber um vulto luminoso em suas costas, como se um anjo o amparasse, mas não um anjo mitológico, apenas um ser em forma de luz. 

    Ele caminhou em direção ao ser lentamente, enquanto Samuel injetava à distância algum calmante energético que o fez parar de emitir seus rosnados, até ficar totalmente anestesiado.

    Então Elohim tirou sua coleira e com a ajuda de outros do grupo, o colocou num tipo de maca de pano, resgatando-o daquele inferno. Fomos seguindo em procissão, só então percebi que outros membros do grupo haviam resgatado alguns seres também.

    Enquanto saíamos, vários moradores repugnantes e desfigurados tentavam nos agredir, jogavam coisas e xingavam o nosso grupo, mas não conseguiam nos atingir.

    A volta foi muito cansativa, mas quando chegamos no topo foi um alívio, o cenário era completamente diferente, havia um bosque, cheio de natureza e um “hospital ao ar livre”, não há nada na terra que se possa comparar. 

    As árvores eram as paredes, troncos com muitas folhas eram as macas, outros troncos eram as mesas e bancos. Havia um toldo que cobria todo o ambiente que parecia feito de arco-íris.

    Era um local muito singular que mesmo depois que conheci muitos outros lugares por lá, nunca vi nada igual. Naquela área muitas coisas se assemelhavam perfeitamente com as da terra, mas este hospital era como um lugar de conto de fadas. Não duvido que houvesse fadas e duendes por lá, mas não os vi. 

    Nada disso foi tão impressionante quanto o que vimos acontecer com o ser que resgatamos. Os enfermeiros o tiraram  da maca de pano e o colocaram em uma das macas feitas de troncos e folhas. 

    Ele permanecia adormecido enquanto seus ferimentos e inúmeras marcas de maus-tratos estavam sendo tratadas com um pano umedecido em algum remédio. Aos poucos este ser-réptil tão animalesco começou a voltar a sua forma humana, causando uma comoção geral em nós que nunca havíamos presenciado a  redenção de um sofredor. 

    Elohim ao ver seu rosto humano subitamente entrou em choque e quase caiu no chão, mas conseguiu se recompor e chegar até aquele que mais tarde descobri que foi seu filho há centenas de anos.

ReencarnadaWhere stories live. Discover now