Ato I, Cena I

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ATO I

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ATO I

CENA I


Interior da casa de Sünder. Acredita ser de manhã. O som da cafeteira, em meio aos entulhos e sujeiras da cozinha, anuncia o ponto exato do café amargo.


(Sünder entra na cozinha)

SÜNDER — Ah! O único barulho que me abraça de forma gentil em manhãs frias como essa... A cafeteria de minha avó, ainda que velha e de muitos dramas para se vangloriar, me consola.

(Sünder enche a única xícara limpa que encontra)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Que horas devem ser?

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — É, que horas devem ser, hein?

(Sünder senta-se à mesa com a xícara na mão)

SÜNDER — (suspira pesado) Eu já... eu já estou perdido no tempo, poderia estar tomando café da manhã no horário da janta agora. Eu não tenho relógios, não quero ter nada que me faça ser escravo outra vez do tempo... Não, não quero. Todavia... o ar que respiro, quando seca a minha garganta dessa forma, me diz que será mais um longo dia de inverno.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Frio por fora, congelado por dentro.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Nem todas as cortinas e fitas pretas para lacrar as janelas impedem que essas paredes com cheiro de mofo façam-no entender que a cada novo amanhecer de inverno, você não irá sobreviver para o último anoitecer.

(Sünder não consegue beber)

SÜNDER — (suspira pesado) Depois de tantos anos sem a luz do dia, depois de tantas fases sem enxergar a lua, depois de expectativas frustradas a respeito das estrelas, já não me importa mais. Morrer de frio seria poesia. Eu nunca fui tão desprezado por mim mesmo.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Desmazelado.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Mas... sempre foi bom estar sozinho... conosco.

SÜNDER — E sempre foi horrível ter a companhia invasiva de vocês, pensamentos que me rodeiam, mas que nunca foram meus. Não podem ser meus. Eu não teria coragem de pensar assim. Eu não me daria ideias tão erradas e pessimistas... Quem sabe fosse o tempo? O tempo me entrou e me usou. Me sugou, me absorveu. Me controla, de agora em adiante. Pois assim eu me tornei mais uma peça do quebra-cabeça que não sente as horas passarem. Maldição do tempo!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, não somos os culpados.

(Sünder morde o último pedaço de pão que tem em seu estoque)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Depois de décadas fechado para o mundo externo, sem visitas, sem telefonemas, sem mensagens, sem vozes, sem toques, apenas com a ilustre presença de seu corpo físico e um estoque sem fim de miojo, sorvete de biscoito e café, depois de décadas de mentiras, o tempo o encontrou. É claro que seria ele! O sugou, o absorveu. Maldição do tempo que o odeia!

SÜNDER — De certo, ele pensara que eu já o usara demais e ainda por cima para não obter nenhum resultado. Porém, ora... quem decide o que é um bom resultado para mim além de mim mesmo? Uma vez que falávamos de minha felicidade e eu havia achado esta forma de ser feliz... ao menos, de não sofrer.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, ficar sozinho é não sofrer.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não há solidão, na verdade, tem a nós.

SÜNDER — E eu cursei metade do caminho com essas décadas de tempo perdido e isolado nas costas. Oras, me deixe, tempo! Me dê tempo! ...Sempre foi bom estar sozinho, sempre foi horrível ter a companhia desses pensamentos (aqui ele silaba) que não são meus.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Sünder e a sua ingratidão...

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele está com fome, tão somente.

SÜNDER — Os tire de mim, tempo. São seus, todos seus. Não estou enlouquecendo! Não admitirei que querer morrer seja algo pensado e planejado por mim, como é planejado por estes que não se calam ao meu redor nem por uma manhã.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Calúnia! ...Calúnia, pois não falo de morte antes do café.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Certo!

(Sünder tira novos pedaços do pão até a sua boca)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Apesar de que... observar o café amargo caindo na antiga xícara de borda esbranquiçada e quebrada, ao mesmo tempo em que formo a ti a possibilidade de a quebrar em seu pescoço para sonhar com um estilhaço o entrar, não poderia mesmo ser obra sua. Não pensa nem em se ajudar dessa forma.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Não tão... certo.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — A escuridão da manhã de inverno já o confundi. Vejam! Ao passo que a manteiga em seu pão é passada mais uma vez com essa faca que não é de manteiga, com a falta de luz dizendo que ainda pode ser noite e que suas mãos tremem para a ponta da faca aguda apontar a garganta na medida em que formo em ti a possibilidade de a mesma encontrar seu pescoço, mas não seria obra sua esse pensamento. Não, não seria. Não pensa nem em se ajudar nem dessa forma.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — A chance de estar em uma segunda-feira é grande, já que a sensação de estar numa segunda-feira é inegável. Ela te dilacera, te avisa que está só começando mais um fim em seu tempo.

SÜNDER — O tempo. Eu tento o governar e por isso nada nunca faz sentido, visto que em minhas contas seria quinta-feira, a empolgante e fraca quinta-feira. (forte suspiro, agarra-se a xícara cheia) E eu tento, como em todas as manhãs, quando o pão quente encontra minha boca fria e ressecada, criar uma via que me explique: por que eu não ouço mais o mundo do lado de fora? Onde estariam todos aqueles que me atormentavam? Todos aqueles que me humilharam? Todos aqueles que não me queriam ou que me criticavam?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — As fitas pretas nas janelas foram um pequeno sacrifício que, sorrindo, tivemos de fazer para o libertar das amarras dos outros e de tudo que tu eras fraco demais em tentação.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Está livre do mundo!

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — ...Enquanto preso em si.

SÜNDER — É um pequeno ato de sacrifício que me aprisiona em um mundo criado, o que é bom... é bom se comparado com o mundo real. O tempo devia ter me dito, no entanto, assim que eu me prendi em libertação, que eu não seria capaz de ser feliz o tempo todo. Porém o que impedia, o sarcástico do tempo, de me dar minutos de compaixão ou de euforia?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Você está certo.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Ele está certo!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Cheio de razão!

SÜNDER — O alívio de não sentir nada por ninguém também me trouxe a angústia de não sentir nada nem por mim.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sacrifícios...

(Sünder morde a língua ao comer o último pão)

SÜNDER — Ah! Por quê? Por que sempre assim? O pão quente a boca tem sempre o gosto de sacrilégio, de dor, de sangue. Da vida que não vivi, das memórias que me privei, das dores que optei levar. Eu engulo pão com sangue todas as manhãs.

(silêncio)

(suspiro)

(Sünder se levanta, à caminho da pia)

SÜNDER — Tinha que ser, até no último pedaço de pão guardado, esse gosto de sangue tão singular. E... ah... (fecha os olhos, frustrado) Uma lástima tantas xícaras dentro da pia, com tantos outros pratos e tantas outras panelas e talheres, jogadas dessa forma. Não vejo mais a minha pia. Onde está a esponja, afinal? Eu deveria acabar logo com essa bagunça... (silêncio) Ah, canso somente ao pensar na hipótese.

ASUNDER (Em pedaços)Where stories live. Discover now