Parte 1 - Capítulo I

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- Serpentinos, estrelatos e caracolianos - repetiu Liarlinde pela vigésima oitava vez, apenas naquela aula - compõem o Eixo do Mal. São os nossos maiores inimigos, os rebeldes que só mantemos pacificados à força.

- E por que fazemos isso?

- Porque são inferiores e não sabem o que é melhor para eles.

- Nunca se esqueça disso, princesa.

Empírico Opus, o conselheiro e tutor real, retomou então, pela vigésima nona vez, uma monólogo sobre as diferenças físicas entre as raças, que provavam a superioridade dos humanos. Ele adorava esse tema.

Liarlinde, a princesa herdeira de Arcádia, já tinha o roteiro das aulas de cor. Em breve o velho começaria a expor os termos da Bula Segregatus, documento que ele redigira anos antes e do qual muito se orgulhava. Depois, explicaria como aquele papiro abençoado havia salvado vidas, colocando enfim as raças menores onde mereciam. É claro que a segregação já existia antes da outorga da Bula, mas aquele documento servira como o ponto final em matéria de supremacia humana. Alguns de seus termos instituíam punições severas para crimes como deixar os campos de concentração sem licença prévia, recusar-se a louvar os deuses do Monte do Pavão e caçar para comer, afinal os escravos eram mantidos em uma dieta limitada e não muito nutritiva que garantia poucas rebeliões. Liarlinde tinha memorizado tudo isso havia muito tempo e não estava com paciência para a conversa repetitiva de Empírico naquela hora, o que era bastante compreensível.

Fazia dias que os pais dela estavam isolados nos aposentos reais e a menina nunca era autorizada a vê-los. Havia o risco de que ela pegasse a maldita gripe, tragédia que representaria o fim do reinado dos Arcandoff. E, claro, esse não era o desejo de nenhum humano de Arcádia. A História mostrava que, ao fim de cada dinastia, impreterivelmente, havia problemas de sucessão. Era uma ideia diferente da outra, as duas querendo se impor em vez de trabalharem juntas pelo bem comum, e isso sempre acabava em guerras sangrentas.

- Agora escreva uma redação explicando por que os caracolianos mereceram aqueles cobertores com sal - orientou Empírico, passando a Liarlinde uma folha de couro e uma pena de patinho-pedreira, aqueles patos azuis que, após a cópula, pulam do abismo mais próximo.

- Eu já fiz uma igualzinha anteontem, Empírico - redarguiu a menina. - Você pode ler aquela.

Enquanto a princesa caminhava, com sua altivez habitual, até a porta da sala de estudos, Empírico curvou-se, respeitoso. O conselheiro era um monarquista devotado, adorava achar que fazia parte dos rumos de Arcádia, mas não passava de um velho muito magro que andava envolto em sua túnica branca e carregava um cajado para lá e para cá. Ele dizia ser o cajado da sabedoria, uma relíquia de família passada de geração em geração de conselheiros. Na verdade, o objeto era apenas uma bengala elaborada, já que o velho tinha os joelhos estourados de tanto rezar aos deuses do Monte do Pavão e fazer reverências exageradas à família real.

Liarlinde percorreu o pátio do palácio em silêncio e o único som que se ouvia por ali eram os passos dela em direção à arena de jogos. Fazia frio, uma fina neve carbônica despencava do céu, mas a princesa não se importava. Não havia nada de que ela gostasse mais do que jogar e, de qualquer forma, estava com a cabeça tão cheia de problemas que não seria uma nevezinha a incomodá-la.

Quando Guer surgiu na arena, com o olhar desafiador e o sorriso torto de sempre, a menina empertigou-se, desdenhosa.

- Pronto para perder, noivinho?

- Isso é o que veremos.

Liarlinde e Guer tinham, respectivamente, seis e sete anos marcianos de idade, o que, para humanos terráqueos, corresponderia a cerca de doze e treze anos. Eles estavam noivos. O garoto era filho de Lut Vallunda, chefe da guarda real, o posto mais alto depois dos próprios reis, e da princesa, é claro. A união fora sugerida por Empírico Opus quando Liarlinde tinha apenas três anos. "É melhor garantirmos a união de Liarlinde com alguém de uma família honrada e próspera. E, o mais importante, uma família devota e segregacionista como os Arcandoff. Nunca poderemos ter certeza da fidelidade absoluta de outros reinos, eles podem acabar sucumbindo às pressões externas e não implantando a preciosa Bula que nos mantém em paz", dissera Empírico ao pai da menina. "Sugiro a união da princesa ao jovem Guer Emanuel Vallunda, filho de Lut, nosso chefe da guarda. Ele é um bravo guerreirinho, as crianças são amigas e, quando o momento chegar, certamente gerarão belos herdeiros para o trono de Arcádia. Além do mais, Lut prometeu empenhar-se em nossa cruzada pela implantação da Bula Segregatus em outros reinos. Ele tem excelentes ligações militares... Devo dar início aos procedimentos, meu rei?". Micanor, muito entretido na leitura de um papiro de comédias, respondeu com um aceno. Empírico entendeu o gesto como um sim, de forma que se deu o noivado.

Soberana - a ascensão da rainha de MarteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora