Capítulo Dois

176 23 29
                                    

Trabalhar no palácio era uma honra, ou ao menos foi isso que os guardas falaram para Canissa, imóveis enquanto os corpos podres de rebeldes balançavam não muito atrás.

Ninguém mais ousou se aproximar, mas eles ainda disseram que ser escolhida (como podia ser uma escolha quando ela parecia ser a única opção?) para trabalhar para o Divino seria uma benção. Traria um dinheiro que era bom e honesto como nada que as pessoas daquele lugar conheciam, e seria imensurável para a família dela. Era só o nome e endereço dela para eles a encontrarem depois. Só isso que eles precisavam.

Marya disse que ela estava fodida.

Pelo menos na cabeça de Canissa a decisão fazia grande sentido.

Não havia trabalho aberto naquela cidade a não ser pelos vendedores, que precisavam ter o que vender para começo de conversa, e os guardas, que precisavam ser homens e relativamente fortes e grandes. Havia outras posições – a própria mãe dela trabalhava como tecelã por exemplo, e claro que nenhuma cidade, muito menos uma capital gigante como aquela, era movida só por vendedores e guardas, mas não havia ninguém procurando por aprendizes no momento, muito menos alguém que escolheria alguém como Canissa e os irmãos.

Esses últimos tempos Canissa só via demissões em massa, nunca novas pessoas sendo contratadas. Enquanto as ruas se enchiam com mais desempregados e famintos e um contratado fazia o trabalho de cinco pelo salário de meia pessoa, estava claro que o ramo de Canissa e dos irmãos era a única opção para qualquer um que não quisesse morrer de fome.

E, mesmo assim, o palácio não parecia ter muitos voluntários entre os quais escolher, não quando todo mundo preferia ficar por perto sussurrando ao invés de ir se voluntariar. Canissa deveria ter suspeitado do porquê disso. Canissa deveria ter suspeitado de muitas coisas em relação àquela situação.

Ela não pensou em nada a não ser que era uma chance. A oportunidade de um salário constante.

Quando ela voltou para o lado deles, os irmãos tinham parado de conversar e apenas a encaravam.

Marya soltou uma gargalhada estranha, rápida e fina, chocada e um pouco estrangulada. Ela olhou para Canissa como se ela fosse a coisa mais hilariantemente desesperadora que Marya já tinha visto, como um trocadilho que era tão ruim que acabou virando a piada mais engraçada em todo o mundo.

Kassim tinha se esquecido do brinco completamente.

— Nós ainda tem que vê o velho Hassan — Canissa argumentou, surpresa, quando ele imediatamente começou a puxar ela na direção da casa deles. Ela olhou para o menino mais velho.

Ele parecia aterrorizado. Foi isso que a fez o seguir sem ousar fazer qualquer outra pergunta, a boca fechando com tanta força que os dentes de cima bateram nos de baixo e doeram. Os irmãos mais velhos dela nunca expressavam medo. A única vez que ela os viu fazendo isso foi...

Foi por causa do que aconteceu com Babet.

Ela endureceu o maxilar. Correu quando Kassim começou a correr e puxar o braço dela com mais força.

Em casa, depois de Marya explicar o que aconteceu, Babet olhou para Canissa, com um só olho e esse assim arregalado e furioso, ficando de frente para ela como se ela fosse a maior traidora em toda Yafa. Ele não gritou com ela. Não bateu. Não brigou ou sequer falou ou explicou o que havia de errado, só a olhou e virou e foi embora, batendo a porta atrás dele com um retumbar violento. Literalmente saiu da casa como se não conseguisse nem ficar perto dela.

A mãe deles, a vida inteira dela uma longa e emaciada imagem de estoicismo e apatia, perdeu cor no rosto e, depois de a encarar com os olhos arregalados e a boca fechada por alguns segundos, foi atrás de Babet com as mãos trêmulas. Canissa ficou. Ela os observou indo embora, e observou os rostos de Marya e Kassim, e não entendeu nada.

A TestemunhaWhere stories live. Discover now