Capítulo 3

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Ainda estamos conhecendo um pouco mais de Samah,e  como era a sua vida. Preparado para um novo capítulo? Então, vamos lá!

Era realmente linda e calmante a vista da cidade dali.

Naquela época, não era a cidade que conhecemos hoje. Na verdade, não passava de um povoado, com as casas de quinze famílias que sobreviviam basicamente das ovelhas, que eram a vida da nossa gente. Mas as palmeiras coloriam um horizonte laranja onde o céu dava um espetáculo de cores a cada tempo do dia. Naquela hora, não tinha crianças correndo nas ruas, e até os cachorros pareciam ter se recolhido para hora do jantar. Do teto de todas as casas, que funcionava como uma sala nas noites amenas, era possível ver toda a vila: o poço; as pedras onde os anciãos se sentavam para resolver os assuntos mais sérios; e o amontoado de cestos e potes, onde hoje funciona o mercado e que antes não passava de um amontoado de produtos de horta para o escambo, num tempo em que o dinheiro não significava nada prá nós.

De onde estava, vi que Nazaré nos observava conversando, do poço onde fazia um esforço tremendo para tirar a água. Vista na luz do sol, que morria no horizonte, a imagem da moça era um presente de fim de tarde para mim. Eu não via sentido algum na discussão das velhas sobre quem era a moça mais linda da aldeia: ela sempre esteve ali, diante dos meus olhos. A beleza estonteante e morena de minha irmã parecia pálida diante da delicadeza clara e tímida que era Nazaré. Apesar de coberto pelo lenço, sabia que seu farto cabelo claro brilhava como se o sol tivesse se mudado de casa, o que combinava perfeitamente com seus olhos azuis e escuros como o mar. Acompanhando meu olhar, Adaliah pareceu ler meus pensamentos:

— E por falar em casamento... Quando é que você vai se decidir?

— Eu não preciso me decidir, preciso agir. Você sabe o que nossa mãe acha: casar primeiro e amar depois. Acho que nosso pai falhou ao protelar o arranjo de um bom casamento para nós... Aí não estaríamos aqui, tendo essa conversa. — Apesar do tom de brincadeira, Adaliah percebeu a tristeza na minha voz. Sei que ela me olhava e via que eu parecia bem mais velho do que a minha idade, já naquela época.

— Naor pode intermediar por você. Ele é mais velho, experiente e se interessa muito por...

— Se interessa demais — interrompi com veemência. O fato de não conseguir explicar por que meu primo me incomodava só piorava o fato de que, definitivamente, não gostava dele. Naor era o irmão mais novo de minha mãe, um bom negociante que ganhara dinheiro negociando as ovelhas da família e agora vivia de sua renda. Como não tinha filhos, vivia interferindo na vida de sua irmã e na forma como ela conduzia a família, depois que o marido morrera. Mas havia algo em Naor que eu não aceitava: a forma como todos os ajustes do tio sempre levavam minha família para a pobreza, enquanto o dinheiro dele nunca era visto.

— Se você ficar noivo, o rei não pode convocá-lo para o serviço militar. — O humor de Adaliah sempre me divertia!

— É... Esse é, realmente, um ótimo motivo para assumir um compromisso. — Enquanto dizia isto, observava Nazaré subir a estrada poeirenta para sua casa. Não podia deixar de perceber a graça com que o pote era equilibrado na cintura fina da moça e a leveza do seu andar pelo morro acima.

— Ela conseguiu dormir, finalmente — disse Iadah, chegando para sentar-se conosco. O olhar nos criticava abertamente pelo tratamento dado à nossa mãe.

— Se nós não pusermos um freio nesta conduta, em breve vamos ter problemas sérios para resolver. Nossa mãe está ficando cada dia mais difícil e obcecada por esta ideia de casamento rico. — Minhas irmãs entendiam que eu não sabia o que fazer.

— Obcecada ela sempre foi. — Eu notava na voz de Adaliah a tristeza pela situação da nossa família. Quando meu pai era vivo, ele ainda era uma espécie de escudo de proteção contra as crises de ira e os ataques de fúria de nossa mãe. Mesmo quando ela o acusava de não se importar em morar num lugar tão simples, ou quando insistia a mudar-se para uma cidade grande; ou ainda, quando o aporrinhava com outra ideia brilhante qualquer, ele nunca perdia a paciência. Conseguia contornar as situações e fazer piada delas. Depois que ele morreu, era cada vez mais difícil ouvir qualquer sombra de riso em casa. Até o humor de Adaliah tornou-se crítico e sarcástico. Isso me dizia que minha irmã caçula era infeliz.

Olhando para Iadah, eu pensava que nunca iria entender minha irmã mais velha. Ela repetia cegamente os conceitos de minha mãe e, ao mesmo tempo, tentava nos conciliar nesta ambição desmedida.

O fato é que nunca tivemos dinheiro. As poucas ovelhas que meu pai deixou eram tratadas mais como pessoas da família do que como bens e, o que ganhávamos trabalhando na época da colheita, mal dava para nos sustentar. Quando meu pai era vivo, ele dizia que a vida era mais do que ouro e bens: abraçava-nos e jogava-nos no ar, dizendo que éramos seus tesouros. E realmente nos sentíamos assim. Claro que minha mãe detestava essa época. Se mencionássemos isso para ela, dizia que remoer esse passado era um atraso de vida.

— Acho que precisamos pensar no que fazer com relação à nossa mãe — Iadah disse isso com uma vozinha cansada...

Se eu soubesse, na época, que não teríamos tempo pra nenhum plano, talvez tivesse tomado uma atitude aquela noite, mesmo.

Eu entendia a ideia de grandeza da minha mãe, apesar de não concordar com ela, mas minha irmã mais velha e minha mãe jamais entenderam minha ideia de vida simples. É que nosso povo era descendente de um homem ilustre e rico da cidade de UR dos Caldeus — a cidade mais moderna do seu tempo. Um dia, este homem, Abraão, recebeu uma mensagem de Yaweh, prometendo que, se ele se dispusesse a servi-lo, faria dele um povo poderoso. Abraão saiu da sua terra com sua família e veio para Canaã, onde teve um filho, Isaque. Isaque foi o pai de Jacó, que mais tarde teve seu nome mudado para Israel, e que significa Príncipe de Deus. Jacó teve doze filhos, e cada filho gerou um clã. Minha casa veio do clã de Benjamim, caçula dos doze de Jacó, e apesar de ser o menor clã, nunca perdeu a esperança de ver nosso povo respeitado pelos Filisteus e Arábios, que vivem ao nosso redor. Meu pai, e o pai do pai dele antes disso, viram os nossos vizinhos chegarem à nossa terra, levar nossas colheitas, roubar nossas mulheres e nunca nos respeitar como Nação. Claro que os juízes do povo atribuem esta constante guerra à desobediência dos clãs à Lei que Yaweh nos deu, mas muitos jovens acreditam que a resposta é política. Então, anos atrás, quando Saul foi escolhido rei, todo o povo acreditou que nosso sonho de grandeza estava finalmente se realizando.

Finalmente, éramos uma monarquia, como os nossos vizinhos. Isso significava para pessoas como minha mãe: escravos, terras e tributos, conquistados com medo ou com espada.

Eu sempre pensei como meu pai: a solução não estaria num rei, mas, sim, na obediência a Yaweh, para que voltássemos a ser senhores na nossa terra e nas nossas casas. Meu pai nunca quis grandes coisas, apenas a garantia de que ninguém iria roubar sua colheita e nem viria estuprar suas filhas, para que ele pudesse envelhecer em paz ao lado dos seus netos.

Ele morreu antes disso tudo. Viu apenas Saul ser coroado rei e o começo da formação do Reino, e eu queria ser a continuação da sua história.


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Espero que estejam gostando. Semana que vem, mais um capítulo da nossa história!

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O Vale de ElahWhere stories live. Discover now