Parte 1: O início do passeio

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Capítulo 1 - 31/12/2009

- Venha aqui, lindinha, não vou machucá-la.

Essas foram as primeiras palavras que escutei dela. Tinha a voz muito doce e parecia tão aflita quanto eu naquele momento, mas mesmo assim eu estava decidida a não me aproximar.

- Venha, menina, vou tirá-la daqui. Você deve estar com fome, não?

Continuava asusstada demais para me mover, mas ouvi minha barriga ronronar em resposta. Ela também ouviu.

- Coitadinha, está com fome sim. Vamos, venha aqui.

Não tinha certeza do que deveria fazer naquele momento. Meu estômago pedia desesperadamente para que eu me aproximasse e aceitasse qualquer comida que ela pudesse me oferecer, mas por outro lado, não tinha certeza se deveria. Ela não era a primeira pessoa a me notar. Já havia recebido certos alimentos, algumas vezes água e outras até mesmo um cafuné de pessoas estranhas e apressadas, mas ela parecia preocupantemente decidida em me tirar do conforto do degrau da antiga porta daquele mercado.

- Vamos, não vou deixá-la aqui sozinha. É noite de Ano Novo e logo vão começar os fogos.

Funguei. Não entendia o que ela estava dizendo, mas percebi que o assunto "comida" era página virada.

Já fazia tanto tempo desde que alguém conversara comigo de verdade que mal me lembrava da sensação.

Percebi que ela estendia uma mão em minha direção.

Recuei assustada.

- Desculpe, menina, não vou fazer mal a você. Eu prometo.

Senti que meu corpo tremia, mas ela continuou avançando.

Deixei que se aproximasse o suficiente para que tocasse minha nuca.

- Isso... É só carinho, viu?

Muito lentamente, senti meu corpo relaxando. Ela também percebeu e sentou-se ali no degrau ao meu lado.

- Agora confia em mim?

Finalmente comecei a mover-me e a farejá-la. Comecei pelo braçoque estava mais próximo, depois a perna. Não pude evitar perceber que ela não havia se retesado como a maioria das pessoas fazia quando eu encostava meu focinho gelado em suas peles.

Seu cheiro era diferente. Ao mesmo tempo em que era doce e suave, tinha um toque forte e profundo.

- Acho que estamos entrando em um acordo.

Lambi sua mão e ela deu risada.

Gostei daquele som. Levantei-me já um pouco mais segura e comecei a farejar seu rosto.

Ela ficou em pé sorrindo.

Ah, não, pensei. Fora mais rápido do que esperava e ela já estava indo embora. Mais uma. Tal como minha antiga família havia feito.

E não pense que estou reclamando, pois não estou de maneira alguma. Tenho absoluta certeza de que todos os que me deixaram em algum momento da vida não haviam tido outraalternativa.

Aposto que ficaram tão machucados quanto eu. Da mesma forma que eu nunca os abandonaria, tenho certeza de que eles também não. Na verdade, por que qualquer um escolheria fazer algo tão triste e egoísta?

A moça, sem ao menos lançar-me uma última olhada, caminhou até o carro que estava parado logo em frente ao mercado.

Abriu a porta que dava para a calçada e virou-se para mim.

- Vamos para casa?

A última vez que andara de carro havia sido com a minha primeira família. Patrícia e o namorado haviam me convidado animadamente para um passeio, que, infelizmente, durara apenas até aquele lugar deserto e descohecido que às vezes ainda aparece em meus sonhos.

Haviam então voltado para dentro do carro e partido sem mim. Coitados, não devem se perdoar até hoje por terem, inocentemente, me esquecido sozinha no campo escuro.

Por isso havia relutado tanto em aceitar o convite para quele passeio, que, o abanar do meu rabo não poderi mentir, parecia tão promissor.

Mas enquanto lutava contra o medo de entrar no carro, a humana aproximou-se de mim, e antes que eu pudesse notar o que ela estava prestes a fazer, pegou-me no colo.

Enrijeci.

Minhas quatro patas ficaram esticadas enquanto ela, rindo, levava-me em direção ao carro. No momento em que se inclinou em direção à porta aberta, meu medo venceu e comecei a me debater em seu colo.

Ela tentava me acalmar com palavras doces, aomesmo tempo em que suas mãos me seguravam firmemente.

- Fique calma... Eu nãovou machucá-la. Só quero tirá-la da rua antes que os fogos comecem.

De alguma forma, entre mãos e patas que disputavam o controle da situação, ela venceu.

Logo, vi-me sendo trancada dentro do carro em sua companhia. Com as janelas fechadas, percebique não haveria para onde fugir. Pelo menos não naquele momento.

Dediquei-me então a farejar todo o ambiente. A simpática humana parecia divertir-se incrivelmente com a minha reação. Cheguei inclusive a ficar preocupada cmo o modo que dirigia. Ela olhava mais para mim do que parafrente. Mesmo um cachorro sabe que isso não é seguro.

- Não vejo a hora de apresentá-la a Lucca.

Lati, finalmente incapaz de conter minha excitação por estar com alguém tão atenciosa. Decidi que aproveitaria o passeio, ainda que durasse apenas tempo o suficiente para me causar saudades para o resto da vida.

E hoje eu sei, na verdade aquele passeio ainda não acabou.



Aos Olhos de ZoeWhere stories live. Discover now