Capítulo 2 - 31/12/2009

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- Melissa, achei que não voltaria mais esse ano.

Ainda estava desajeitadamente sendo carregada por Melissa, cujo nome só descobrira naquele momento, para dentro da adorável casa amarela quando um homem aproximou-se chamando por ela.

O encontrou aconteceu no interior da sala, enquanto Melissa fechava a porta atrás de si.

Do colo, analisei o que meu limitado campo de visão permitia. Dois sofás que pareciam extremamente aconchegantes. Ok, quero experimentá-los, pensei. Um tapete felpudo e alto da cor do sofá. Ok, vou até ali primeiro, corrigi. Uma estante com fotos, livros e televisão. Hum... será que há comida atrás de uma dessas portinhas?.

- Pelo amor de Deus, Mel, o que foi que você fez?

A voz séria do homem de olhos escuros à minha frente despertou-me dos devaneios. Comecei a tremer. Sabia que ele estava se referindo a mim.

- Eu encontrei essa menina linda sozinha na rua, Lucca.

- Tudo bem... – ele falou lentamente aproximando-se de nós – Mas pode me explicar como foi que a menina linda da rua veio parar no seu colo, dentro da nossa casa?

Melissa sorriu e me colocou no colo de Lucca, aparentemente ignorando a minha tremedeira.

Ele soltou uma exclamação de surpresa ao me pegar, mas acho que percebeu que eu estava tão desconfortável quanto ele.

- Lucca, é noite de Ano Novo. A pobre cachorrinha estaria em perigo na rua sozinha com todo o barulho. E bem... É nossa primeira virada morando juntos. Pensei que poderíamos ter uma convidada especial.

Ele a estudou por um momento. Dava para notar que não tinha forças para dizer não a Melissa. Sua expressão era um misto de divertimento, admiração e amor.

- Mel, mas...

- Obrigada! – disse ela adiantando-se e o beijando levemente nos lábios, impedindo que terminasse sua frase.

Melissa virou-se correndo para a porta e voltou para o carro, deixando-me sozinha com Lucca.

Ele me acariciou o tempo todo.

Depois de recuperado do susto decorrente da surpresa, senti que ele também relaxava.

- Você levou menos tempo do que eu para conquistar a Melissa. Bom trabalho - sua voz continuava em um tom divertido.

Não resisti e lambi seu braço. Ele riu.

No mesmo instante, Melissa entrou correndo, eufórica de excitação, carregando algumas sacolas.

- Não me diga...

- Se ela vai passar a noite aqui, precisamos ter tudo o que ela precisa. Comprei ração, aperitivos, uma caminh....

- Quantas noites você acha que ela vai passar aqui, Mel, para você ter comprado tudo isso?

Ela deu de ombros.

- Só estou sendo precavida, amor. Considere isso nosso presente de Natal atrasado a ela.

Lucca gargalhou.

- Sabia que não deveria tê-la deixado sair sozinha hoje.

- Como se você pudesse me impedir - respondeu ela sorrindo enquanto se aproximava de nós.

Beijou-o mais uma vez e me pegou em seus braços.

- Agora se me dá licença, vou apresentar a casa a Zoe - declarou atravessando a sala tão delicadamente mobiliada.

- Você já deu um nome a ela? - perguntou Lucca, mal contendo o riso.

Melissa parou na porta que dava para o corredor com um enorme sorriso no rosto.

- E ela tem o seu sobrenome.

Naquele dia, conheci Sílvia, a mãe de Melissa. Uma mulher com as mesmas características que ela. Mãe e filha compartilhavam da mesma pele oliva e dos cachos reluzentes. Não fosse pelos olhos, pela diferença de idade e os efeitos dela, poderiam ser dadas como a mesma pessoa.

As duas me deram banho e me chamaram de Zoe o tempo todo.

Logo comi, e quase não acreditei na sorte que tinha naquele momento. Era ração mesmo!

Não me lembrava da última vez que haviam me alimentado tão bem. E me refiro não somente ao corpo, mas também ao meu espírito.

Poderia inclusive ter comido ainda mais, mas as duas mulheres estavam preocupadas com algo que não compreendi. Tinha relação com o fato de estar com a barriga vazia há muito tempo e ter que retomar aos poucos. Bobagens.

Quando já era noite, chegou também o pai de Melissa, Augusto, homem sério e barrigudo. Reconheci imediatamente em seu rosto os olhos verdes de Mel.

Ele não prestou muita atenção em mim, naquele dia e  nos próximos.

- Estava demorando... - foi tudo o que se limitou a dizer.

O casal morava na cidade vizinha, por isso não viam a filha com tanta frequência, o que não impedia que Melissa telefonasse para eles todo dia, antes do almoço ou do jantar. Ela dizia que dessa forma podiam sentir que estariam juntos pelo menos em uma refeição de cada dia.

Ao menos uma vez por mês Mel e Lucca passavam um domingo fora, na casa dos pais dela. Saíam quando ainda estava amanhecendo e só voltavam quando já era noite. Esses eram dias em que eu ficava sozinha e entendiada, e que, portanto, não descreverei a vocês.

Impressionante era que, mesmo residindo um tanto quanto distante da filha, o casal aparecia para visitá-la com uma velocidade assustadora quando ela precisava. Suponho que seja isso o que bons pais fazem.

Gostaria de poder fazer o mesmo por vocês.

Passei o restante da noite vasculhando os cômodos que tinham um cheiro estranho, o mesmo que notei de forma mais sutil em Melissa. Vasculhei também o pequeno quintal que se estendia entre a casa e o portão, brincando com bolinhas que ela havia comprado no trajeto de volta do supermercado.

Logo adormeci tão cansada fiquei.

Não sei dizer por quanto tempo dormi. Acordei com o coração acelerado, certa de que algo desastroso estava acontecendo.

Barulhos ensurdecedores vinham de fora. Tinha a impressão de que bombas eram acionadas uma após a outra dentro de minha cabeça.

Encolhi-me tremendo e pude ver pela grande janela de vidro que dava para a pequena sacada que o céu escuro pela noite explodia em cores.

Creio ter chorado de medo, porque, em segundos, Melissa aproximava-se.

- É só barulho, Zoe, não precisa ter medo - pegou-me no colo - São fogos. Olhe.

Ela correu de volta para a sacada, onde seus pais e Lucca abraçavam-se, desejando votos de felicidade e sorte para aquele ano que começava.

- Feliz Ano Novo! - desejou Melissa, envolvendo as três pessoas com o braço que mantinha livre.

Lucca puxou-a para o canto da sacada e a beijou. Então pareceu notar-me ali, no colo de Melissa, entre os dois.

Ele a encarou por um momento.

- Você não vai desistir dela, vai? – perguntou apontando para mim.

- Eu desistiria, mas sabe o que dizem - respondeu ela sorrindo - o que se faz no Ano Novo permanece pelo ano todo. 

Bem vinda, Zoe.


Aos Olhos de ZoeWhere stories live. Discover now