Na cadência bonita do samba

18 5 2
                                    

#Rio de Janeiro, 1993 mais coisa menos coisa.

Faz muito tempo. Eu devia ter uns 16, 17, talvez 18 anos e tinha sido convidada por uma amiga para ir com ela e seus pais ao desfile no Rio. Imaginei que íamos no esquema básico de arquibancada, banheiro sujo e cerveja em copo de plástico. Estava tão enganada! O pai dessa amiga costumava trabalhar com cana de açúcar (acho que ainda o faz) e foi um distribuidor importante de álcool ou açúcar, não me lembro, que nos tinha convidado. Quer dizer, convidado a eles, eu fui de penetra mesmo. Enfim... fomos de camarote!

O "nosso" camarote na verdade eram dois camarotes com o serviço de comida e bebidas – muita bebida – e banheiros exclusivos. Um luxo! E os convidados? Parecíamos um programa de intercâmbio: 4 paulistanos (eu, minha amiga e seus pais), 2 cariocas, 1 argentino, 1 italiano, 2 casais de russos, 2 americanos, 2 poloneses e 1 ucraniano.

Quase morri de susto – ou de rir – com a chegada dos Russos. Os homens de ar mafioso (sem preconceito: eles tinham mesmo ar de mafiosos) tinham dentes de ouro – de verdade – paletó brilhante naquele calor carioca e correntes e pulseiras que eu queria acreditar serem bijuterias mas provavelmente não eram. O mesmo acontecia com as senhoras: uma era magra, alta, de cabelo laqueado, vestido drapeado e um longo colar imitando um cacho de rosas. De ouro, provavelmente. A outra, mais baixinha e gordinha, trazia brincos (de) brilhantes e um vestido preto na altura do joelho. Acho que só não foram assaltados à entrada do sambódromo porque ninguém devia acreditar que alguém andaria com joias, nada discretas como aquelas, de verdade, no Rio de Janeiro, no Carnaval.

O resto da trupe chegou com ar de turista: ou floridos demais ou sóbrios demais.

Formalidades, cumprimentos, aperitivos, conversinhas... Eu não fazia parte desse mundo, por isso fiquei de lado, com minha amiga, bebendo martínis servidos por garçons contratados.

Então, o batuque começou. E aquela gente não aguentou. Acabou formalidade, conversinhas ou decoro. O samba tomou conta de tudo! As russas tentavam dançar desengonçadas em cima do salto. A mais baixinha subia e descia o vestido revelando sem parar uma calcinha preta rendada e a mais alta se atirava loucamente para cima de um americano constrangido mas não muito. Os russos, de charuto na mão e vodca na outra, riam e davam palmadinhas na bunda de suas mulheres, sem se importar se era na da sua mulher ou na do outro. O italiano ora tirava as calças, ora a camisa – afirmando que não podia tirar os dois ao mesmo tempo porque seria falta de educação – e pedia lições de samba para uma das senhoras cariocas que, mesmo sem saber dançar, não perdia a oportunidade de agarrar na cintura do ragazzo. O argentino, já quase em coma alcóolico antes da metade da noite, começou a cantar "cidade maravilhosa" em looping, batendo as mãos de maneira pateta, sem conseguir sair do primeiro verso. Ucranianos e poloneses se abraçavam e pulavam e cantavam e se beijavam (sim um polonês beijando um ucraniano que, ao que me pareceu, não se conheciam antes de tal encontro). E todos sambavam, ou pelo menos tentavam, e cantavam os refrãos sem compreender a letra.

Às 5 da manhã estavam todos mortos. O luxuoso camarote parecia uma espelunca com gente de ouro no corpo dormindo no chão e viajantes de primeira classe dormindo sentado na cadeira dura com a cabeça apoiada sobre um copo de cerveja vazio. Eu estava deslumbrada. Morta e deslumbrada. Ainda faltavam escolas de samba para se apresentar. Talvez uma, talvez duas. Mas eu não aguentava mais.

– Na próxima, não vou sambar. Vou ficar sentada – comuniquei para quem quisesse ouvir. Ainda ouvi alguém murmurando um "eu também".

Mas, então, lá no fundo, no começo da avenida, ouviu-se um apito. Seguiu-se um canto, um repenique chamando, uma cuíca chorando. Depois agogô, a caixa, os surdos, o pé entrou na batida, xequerês, a cintura mexeu, ganzás, fiquei de pé,tamborins, mais alguém ficou e depois outro e outro e.... Parecíamos zumbis, depois já não mais. Sambou-se tudo de novo, morremos no fim, voltamos na batida seguinte.

"Eu quero morrer numa batucada de bamba
Na cadência bonita do samba"

Ataulfo Alvez

>>Quer ouvir um pouco de samba pra ver se aguenta ficar parado? 

***Quem já esteve no carnaval no Rio? É emocionante, vale a experiência uma vez na vida (a próxima, é desfilar...). 

Gostou da história? Por favor, curta (na estrela) e, se puder, deixe seu comentário, seja positivo ou construtivo!

No próximo capítulo, vou contar uma história sobre um casal sem jeito algum para ir à praia. Se passa em Portugal, em Sines, no Alentejo. 

Histórias de ViagemOnde as histórias ganham vida. Descobre agora