O Ritual - Parte 2

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O escolhido, assim chamado não porque algum fado divino o quis mas por ser sua vez e nada mais, recebe em suas mãos a escritura

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O escolhido, assim chamado não porque algum fado divino o quis mas por ser sua vez e nada mais, recebe em suas mãos a escritura. Olha para ela, sabe o que fazer, não sabe bem ao certo como o fazer. Tentou antecipar em sua mente como agiria quando o momento chegasse, mas agora, sentia-se perdido. Levanta e posta-se de pé, no centro de todos.

Assim foi dito, assim deve ser feito.

Olhares curiosos a sua volta, murmurinhos, "o que será que é?" ouve baixinho por entre os sussurros. Pede silêncio, tem pouco tempo para deixar o seu legado.

Começa a se mexer, calado, não emite som algum, é proibido. Braços coordenados em conformação com as pernas, dedos cumprem seu papel, olhares atônitos, incólume, o silêncio reina.

De repente um grito corta o vazio, transe rompido. Rapidamente olha para o pecador que pronunciou tamanho despautério, e com olhar solene mas repreensivo, faz que não com cabeça, e tenta retomar de onde parou. Ao começar a sintonizar novamente seus pensamentos outro grito destrói o silêncio e o busca das profundezas como a mesma sutileza que um guincho de 50 toneladas pode arrancar uma cristaleira do chão.

Humor levemente irritado, novamente faz sinal negativo com a cabeça, e quando tenta buscar seu eu interior mais um grito chega ao salão e ecoa forte nas paredes, seguido por mais um, e mais um, e mais um outro da mesma pessoa que disse um outro grito qualquer. Assustado, olha em pânico para todos, não pode falar, essa lei é absoluta. Palavras espremem-se em sua garganta, como bois revoltados pelo confinamento.

Gesticula, pede com o olhar, ninguém o entende, os gritos passam a ter a companhia de cotoveladas, ponta pés, pessoas se projetam em sua direção, todos olham para ele. Perdido e desesperado, vislumbra uma única pessoa que está no caminho certo, tenta se comunicar com ela, mas ela não entende, ele se esforça, suor na palma das mãos, a têmpora escorre lentamente, então, uma conexão é feita, a pessoa compreende que está na direção certa, e quando começa a movimentar os lábios para dizer "a palavra", uma mão pesada cai em seu ombro, e diz:

- Não há mais tempo. Está acabado, você falhou.

Frustrado, retorna a seu lugar, ciente do que aconteceu, envergonhado por sua impotência. Outro candidato é selecionado para o teste. Parece ritual...

- O Zé!

- Oi?

- Da pra vir você vir aqui?

- Dá não Jão, tô ocupado. Fala daí que eu escuto.

- Não cara, é melhor você vir aqui, tem uma coisa que você tem que ver.

- Agora não dá, fala logo daí!

- Então, é que tem uma bacia aqui.

- Bacia? E o que é que tem demais em uma bacia?

- Então, é uma bacia cheia de sangue, em cima de um altar meio macabro.

- Altar, que altar? Você não tá confundindo com uma mesa não?

- Não, não estou! É um altar, tem um pano com uma cara de bode e uma estrela de ponta cabeça, e ainda por cima com essa bacia em cima.

- Hum, só tem isso ou tem mais alguma coisa? Não tem um tabuleiro com umas cartinhas, dados e umas outras coisas não?

- Cartinhas? Não. Tem umas velas, uma faca estranha, uns lençóis, coisa desse tipo, e essa bacia, e olha, tá meio tombada, escorreu um pouco pela mesa.

- E sujou os lençóis?

- Sujou de leve, mas sujou.

- A gente lava depois. Vem cá, não devia ter umas pessoas aí com você não? Pergunta pra elas o que aconteceu.

- Pois é, tem. Umas cinco pra falar a verdade. Por isso que você devia vir aqui.

- Tem cinco pessoas? E porque é que você tá me chamando aí até agora?

- Então Zé, tem cinco pessoas mortas.

- Mortas? Como assim mortas? Como que tem gente morta aí?

- Tendo! Tem gente morta aqui simplesmente pelo fato de ter gente e elas não estarem vivas! Sério, da uma chegada pra cá.

- Não acredito que você vai me fazer parar o que estou fazendo de novo!

...

- E aí?

- É, bem que você falou, tem gente morta mesmo. E olha só, tem uma bacia ali, parece sangue né?

- Bacia? Que coisa em Zé, se você não falasse acho que eu nem ia reparar. E agora, o que a gente faz?

- Sei lá, pega o script, vê se isso tá no texto.

- Tá não, nada disso. Já folheei umas duas vezes.

- É, bom, sei lá. Acho melhor irmos embora, e chegar amanhã cedo como se não soubéssemos de nada.

- Será? E o que é que a gente faz com a narração?

- A gente apaga, sem narração, sem publicação. Aí tá tranquilo né?

- Se você tá falando, por mim tá beleza.

- Mas e essa outra pessoa?

- Que pessoa?

- Essa que está lendo aqui.

- Ah, essa. Sei, então, acho que ela vai não vai contar nada pra ninguém não.

- É? E porque é que você acha isso?

- Porque ela leu tudo até agora e nem chamou a polícia.

Crônicas Idiotas para passar o tempo que você não tem para gastarWhere stories live. Discover now