Latíbulo

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A luz do sol passava pelo vidro fechado, por isso ela abriu os olhos primeiro. Ele continuava dormindo com a boca levemente aberta, e, antes de ficar realmente desperta, o corpo dela parecia saber exatamente o que fazer: sorrir. Levantou a cabeça do peito dele e ficou olhando a forma como respirava. Passou o polegar suavemente pela boca, pela bochecha e pelo nariz do dorminhoco, traçando o caminho do inferno ao paraíso. Sabia que o rapaz não ia acordar.

Respirou fundo, tentando achar um modo de levantar. Estava quase totalmente em cima do corpo adormecido. Com muito esforço e agarrando-se aos bancos do carro (a ideia de escolher um modelo grande fora, realmente, excelente), conseguiu pegar a camisa social embaixo do seu acompanhante e colocou de qualquer jeito, apenas para cobrir a nudez. Logo em seguida, praticamente fazendo acrobacias, conseguiu chegar ao banco do motorista (não sem antes bater a cabeça no teto).

Dali, ficou mais fácil alcançar suas próprias roupas no chão do veículo, então se livrou da camisa para colocar o que lhe pertencia.

A estrada em que estavam era deserta. Ambos conheciam o caminho de olhos fechados e sabiam que aquele trecho era vazio, só deixando espaço para o céu e o cheiro de viagem. Propício para o momento.

E que momento incrível, pensou, repassando na cabeça os toques que distribuiu e recebeu de madrugada. Sentiu a sensação inconfundível de borboletas batendo asas na sua barriga. Fazendo jus ao ditado popular que ouvia desde criança, aquilo era bom demais para ser verdade. Talvez não fosse verdade mesmo — ecoou em pensamento enquanto cheirava a peça de roupa nas mãos. Talvez precisasse aproveitar antes de despertar para a realidade.

Ele respirou forte no banco de trás e ela riu, decidindo cobri-lo com o tecido que segurava. Depois, ligou o carro e pôs o veículo em movimento. Não podiam perder tempo, afinal. Sabia que havia um posto de gasolina a mais ou menos trinta minutos dali.

Não demorou mais que isso para chegar. Abasteceu o carro e o encostou num canto escondido e solitário do posto. Olhou para trás, checando um possível despertar; no entanto, nenhum movimento... Isto é, se ele não estivesse fingindo.

A moça fechou os vidros, pegou uma pequena bolsa com seus pertences e desceu do veículo para ir até o banheiro da loja de conveniência. Ao cumprimentar a atendente, ficou com a impressão de que até a funcionária percebia o quanto estava feliz (na verdade, a atendente não notou, mas os apaixonados não ligam para isso).

Escovou os dentes no banheiro, num improviso bem evidente. No comércio, encheu os braços de energético, pacotes de biscoito, chiclete, garrafas d'água e suco (sabia que ele ia reclamar por não ser refrigerante). O estômago pedia café, mas resolveu aguentar até chegarem ao destino (apenas mais uma hora!). Pagou tudo e levou para dentro do veículo.

Como previsto, ainda havia um corpo semiadormecido lá. Ela colocou os pés em cima do banco e abriu uma lata de energético, apoiando o braço nos joelhos. A voz de Maria Gadú ressoou quando ligou o rádio. O sol iluminava seu rosto e ela não fez nada para tampá-lo. Fechou os olhos e aproveitou o calor.

— Gadú? De novo?

A ouvinte não conseguiu evitar um sorriso.

— Você estava fora dessa realidade, não tem direito de reclamar.

— Bom ponto.

A moça contorceu-se mais uma vez para ficar de joelhos no banco. Contentou-se em ficar olhando para a expressão de recém-acordado do companheiro, que retribuiu o olhar dela com um sorrisinho.

— Você é uma graça quando dorme, sabia? — comentou ela.

— Eu sempre sou uma graça. — Ele bocejou bem na hora em que o pacote de chiclete o atingiu na cabeça.

B'shert [O contraste de suas luzes] - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now