Capítulo Três - Ele tem que saber

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(Narrador)

Se não fosse a internet e o fato de que o próximo alvo da Bel tinha empresa aberta em seu nome, Dixie nunca teria descoberto que Ulisses não é apenas Ribeiro como lhe contaram, mas também Carvalho. Dá para ficar boquiaberto com a quantidade de coisas que a internet sabe sobre nós, ainda mais se o sujeito que pesquisa tem consigo toda a base de dados das principais lojas de varejo que vendem por internet. Basta alguém ter comprado uma vez que automaticamente há um nome ligado a um endereço, um CPF, um cartão de crédito e, dependendo do item comprado, o tamanho das calças e meias.

Foi assim que Dixie e Bela cancelaram a estadia num apartamento e alugaram outro por aplicativo de hospedagem e com cartão de crédito clonado. Um apartamento tão perto do novo alvo, que se Ulisses desconfiasse que era perseguido, bastava olhar pela janela para ter certeza.

O bom do condomínio de alto padrão é que sempre há mais de uma torre num mesmo terreno. A torre leste por exemplo, a delas, tem uma linda visão da piscina e do apartamento dele.

Arrastaram suas bagagens pelo elevador do prédio B, que é bem de frente para o prédio C. Sétimo andar, sala ampla, conceito aberto, do mesmo jeito que está na moda ultimamente, num complexo de seis prédios, alto padrão, terraço gourmet, depósito próprio, vaga demarcada na garagem. Cozinha americana. Três quartos, duas suítes.

Dixie carregava todos os seus equipamentos em um único case preto com rodinhas. Fora seus equipamentos, tudo o que trazia de pessoal era uma mochila de acampamento e um, apenas um livro físico. "Neuromancer", que já a salvou uma vez e de onde tirou seu apelido Dixie Flatline.

Num case parecido com o de Dixie, Bel leva apenas seus aparatos de cozinha. Um cooktop de cinco bocas, panelas, cafeteira, liquidificador. Um mixer, tábua de carne e facas. Dois pratos, dois copos, seis talheres. Medidores. Ficou feliz que sua casa nova tivesse armários embutidos e organizou seus pertences da sua maneira meticulosa e cirúrgica. Cada coisa tem sistematicamente seu lugar, mas o frigobar não saiu do case, nem o forno elétrico.

— Ulisses Carvalho. — Dixie anunciou, entrando no novo quarto de Bela, depois de instalar todos os seus dispositivos no chão da sala — Apanhei para achá-lo, então espero que compense.

Com um telescópio de supermercado, Bela anotava as idas e vindas da próxima vítima, vizinha de prédio, que não eram muitas. Saiu por alguns minutos com um videocassete em mãos, subiu um andar, entregou-o para o morador do andar acima, e voltou cinco minutos depois. Buscou toalhas limpas no guarda-roupas e entrou no chuveiro.

Ela não vê o que ele está fazendo, mas enxerga a luz acesa do banheiro.

O que mais a intrigava no alvo era sua aparência comum. Não tinha manias de assassino, paranoias de criminoso, não fazia chamadas criptografadas e não falava em códigos: bandido reconhece bandido.

Então como um homem comum, sem qualquer contato com o partido que a criou como cadela de rinha, vai parar na lista de encomendas?

— Você vai largar esta lente ou não? Estou falando com você! — Cansada de falar com as paredes, Dixie tentou de novo.

— Calma!

— Deixa eu ver isso aí — A Bel nunca é tão desligada assim. Convencida de que a parceira assistia alguma coisa perigosa, tirou o telescópio de sua mão e focou, ela mesma, no apartamento do alvo.

Sozinho, Ulisses caminhava nu por seu apartamento.

— É trabalho. — Bel se defendeu.

Dix não rebateu, apenas saiu do quarto e a deixou só. A Bel nunca se desconcentra pois sabe que, se falha, Heitor quem entra na mira.

Mas o novo alvo tinha um jeito esguio e delicado. Não apresentava a moleza típica dos homens que vivem pelos livros, Bel percebeu. De olhos escuros e maxilar marcado, alguma coisa de seu semblante a fazia se lembrar de alguém.

Tão acostumada aos estereótipos (advogados, políticos, outros matadores de aluguel, administradores de cargo alto em empresa ou qualquer cargo de poder semelhante), aquele ali era novidade. Sempre se perguntou como eram os homens comuns, desses que se casam e têm filhos, batem bola no domingo, que comem pizza requentada no sábado de manhã. Ulisses Ribeiro, com a cabeça a prêmio, era este tipo de pessoa. Um homem comum. Que escova os dentes e se prepara para dormir, e não como os que está acostumada, os que mal dorme por receio dos inimigos.

Por mais besta que aquilo fosse para Dix, aquele era o primeiro homem normal que Bela conhecia. Um tipo, ela poderia prever, que choraria quando ela lhe cravasse duas balas na testa.

De ombros largos e as mãos grandes, embora um pouco magro demais, e que lê Anais Nin na sacada sem saber que alguém o assiste se masturbar.

— Pronto — Bel retomou quando voltou para a sala, se sentando sobre o case vazio dos equipamentos da outra. — O que você queria me dizer?

— Só fiz o perfil dele, ué — Dix preferiu não falar sobre o acontecido — Vinte e oito, escritor, jornalista de formação. Tem um blog pela Folha de São Paulo. Até onde eu li, porque o cara é prolixo até demais, no blog ele sequer fala sobre o governo. Às vezes comenta sobre os excessos da Polícia Militar, mas não é o suficiente para colocarem um preço na cabeça dele.

— Então... ?

— É que sou muito inteligente, né?

— Sei disso.

— Então você me dê os parabéns, porque descobri uma coisa.

— Fale.

— Você acaba com a minha graça. É muito chato me empolgar com as coisas e você não dar a menor bola, sabia?

Dixie.

— Tá! Ulisses Carvalho é filho de Manuel Ribeiro.

— Heitor deve saber de alguma coisa.

— Você quem disse que não foi Heitor quem te passou esse trabalho!

— Mas ele tem que saber.

— Olha, antes de você sair por aí extorquindo pessoas e cobrando favores, vamos pensar um pouco. Esse Ulisses sabe quem é o pai dele? Se sabe, sabe o que o pai dele fazia? Se sabe, ele viveu o que você viveu? Se ele viveu... como se livrou de tudo e virou escritor?

— Se eu não resolver isso logo, alguém vai vir atrás dele e depois virão atrás da gente.

— Bel, o que você não está me contando?

— Hoje é sábado. Nós temos prazo para resolver isso. Você fica de olho nesse cara até que eu volte. Anote qualquer coisa estranha que ele fizer e, se for muito estranha, me ligue.

— E você vai fazer o quê?

— Não saia desse apartamento em hipótese alguma.

Inimigo Público - Qvia Nominor LeoWhere stories live. Discover now