Kamélia

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Pouco antes da noite cair, a cabana já estava em ordem. Foi um pouco difícil retirar os restos do monstro, os estilhaços de madeira e as manchas de sangue. Kamélia recebeu trapos limpos para se vestir. Era o que tinha. O velho não possuía luxo algum, muito menos vestimentas adequadas para uma mulher.

A garota seguia confusa. A aflição causada pelo tal Trax havia passado. Tudo o que ela queria era entender o que se passava. Seu real nome, sua idade, de onde veio e, principalmente, por quê estava desacordada em uma cabana, ao lado de um monstro.

Em silêncio, estava sentada à mesa. O velho preparava um jantar para ambos. Seria algum tipo de sopa. Enquanto preparava o grude, questionou a garota:

-Você realmente não lembra de nada?

-Apenas acordei ao lado daquele monstro... Em um momento ele estava morto, depois estava vivo, atrás de mim. Não me lembro nem como cheguei até aqui.

-Você chegou aqui sendo perseguida pelo Trax. Eu vi vocês de longe. Ao ser encurralada,  conseguiu achar minha foice e usou para decapitar o monstro. Foi um golpe muito bem dado, certeiro. Parece até que sabia o que estava fazendo.

-E depois? Por quê eu estava lá dentro com ele?

Antes de responder, o cozinheiro barbado serviu duas cumbucas de sopa, dando uma à Kamélia. Então, sentou-se para comer e voltou a falar:

-Eu não quero confusão. O reino está passando por problemas, prisioneiros fugiram, Oclásios corruptos estão atormentando pessoas,  caçadores de recompensas nos atacando quando menos se espera. E os monstros... Cada vez mais frequentes, cada vez mais fortes... 

-Mas o que isso tem a ver comigo?

-Não sei suas intenções. Além disso, após golpear o Trax, vc caiu por terra. Achei que estivesse morta. Coloquei os dois lá dentro para evitar chamar a atenção. Então, voltei para a estrada, pra pegar a carroça que deixei para trás.

-Aquela coisa poderia ter me matado... Como pode me colocar lá com aquilo?

-Como eu disse, não sei quem você é e o que quer. O problema é que eu pensei ter tempo, que o Trax iria se regenerar somente no dia seguinte. Mas não... Um intervalo de meia hora bastou.

O velho falou e começou a encarar a refeição. Olhos estáticos, como se não acreditasse nas próprias palavras. Então, mudou de assunto. O papo que se seguiu começou pela identificação dos nomes. O senhor, chamado Shrod, começou a informar Kamélia sobre as diversas coisas que ameaçavam o reino. Ela, ouvia como se estivesse a ler vários cartazes ao mesmo tempo.

O velho barrigudo custava acreditar que a garota não se lembrava de nada. Ainda com receio, quis saber quando a garota iria partir. A resposta era difícil, quando nem ela mesma sabia para onde ir. A única sensação que ainda tomava conta de seu peito era a de fuga. Era necessário se esconder, proteger sua integridade. O porquê disso estava muito longe de vir à tona.

Shrod então respirou fundo e fez uma concessão. Kamélia poderia passar uma temporada ali, desde que ajudasse. Afinal, uma boca a mais para alimentar era um caso complicado, dada a situação. A garota acatou a condição sem pensar duas vezes.

Foi então que ouviram passos do lado de fora. O velho apenas ordenou que a garota pegasse a própria tigela e se escondesse. Feito isso, abriu a porta, que estava toda destroçada. Eram soldados do rei. Quatro deles.

-Fomos alertados sobre o barulho de tiros. Isso, juntamente da fogueira acesa, indica que foi atacado. É verdade?

-Sim, um Trax apareceu por aqui e tentou invadir minha casa. Como pode ver pelo buraco no teto, consegui destruí-lo.

-O rei já informou que quem deve cuidar dessa situação são as pessoas de sua confiança. 

-Entendi, me perdoe. Na próxima vez que entrar um monstro na minha casa, eu dou uns biscoitos à ele e peço que espere, enquanto vou até vocês pedir ajuda.

-Está debochando, velho? -Falou um dos soldados, seguido de um tapa com a luva de couro na face de Shrod.

-Deixe debochar. Incluirei nos documentos a notificação de que essa área está inabitada e não deve receber a ajuda de Oclásios ou soldados. Qualquer pedido de socorro vindo daqui será tratado como tentativa de emboscada e o responsável será penalizado de acordo. Bem, acho que terminamos por aqui. Certo, rapazes?

Os quatro se retiraram, dois deles com tochas em mãos. Aquele que fez a ameaça ia à frente, devia possuir algum cargo superior. O velho fechou a porta e a reforçou com um banquinho. Kamélia saiu de debaixo da cama. Por pouco não esqueceu-se da tigela de sopa. Isso só não aconteceu pois sua fome era enorme. Talvez, iria até repetir.

Shrod contou que, assim que a situação com os monstros piorou, o rei decretou que faria intervenção. A desculpa era que custava dinheiro deslocar as tropas e mantê-las, então seria feita a cobrança pela ajuda. Kamélia levantou apenas uma questão, antes de encher a boca com uma grande colher de sopa:

-Mas como eles realmente sabiam que um monstro veio até aqui? Uma fogueira pode indicar qualquer coisa.

De fato. Mas, talvez não fizesse diferença questionar. Agora, estavam por conta e risco, tal como disse o soldado. Shrod terminou de comer e se preparou para deitar. Já estava limpo, banhou-se logo após salgar e armazenar a caça. Kamélia iria dormir no sofá.

-Amanhã iremos ao mercado vender a carne que coletei. É temporada de caça, não rende muito dinheiro, mas com você isso pode mudar. Irei te deixar no mercado enquanto continuo trabalhando. 

-De onde você tirou que eu sei fazer vendas?

-Quer ir caçar no meu lugar? Se bem que não é má ideia. Amanhã irei colocar a carne para secar. Pode ser uma boa coletar mais carne antes de ir ao mercado. Às vezes amos sorte e a venda gere um bom lucro.

-Eu vou caçar com a mesma arma que matei o Trax?

-Claro que não! -O velho riu. -Eu quero vender pelas de carne inteira, não em pedaços misturados com chumbo. Talvez eu deixe você usar o arco e flecha.

Dito isso, Shrod foi até seu baú, em frente à sua cama e pegou um lençol, o qual deu à Kamélia para se cobrir. Lavou a boca com a água que estava em uma caneca e cuspiu em um balde que estava ao lado do forno à lenha. Deu boa noite e se deitou. Não devia ser tarde da noite, mas, pessoas que dependiam do trabalho braçal  precisavam acordar logo nos primeiros raios de luz.

A garota de cabelo e fogo repetiu o processo para enxaguar a boca, então deitou-se no sofá. Não estava tão frio. Na verdade estava uma temperatura agradável. Pela janela que ficava acima da sua cabeça era possível ver chamas remanescentes da fogueira acesa para incinerar o Trax. Então, aninhou-se e teve seu último pensamento antes de dormir, com facilidade, por conta do cansaço: 

"Espero que ao menos meus sonhos me mostrem quem eu sou."


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