2. Allison

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A tela do holobook, suportavelmente clara, iluminou o suficiente para revelar os olhos castanhos e cansados de Allison.

Ela via o reflexo de seu rosto na tela, um avatar no ponto de partida de um novo desafio, e a janela aberta de seu escritório revelava a Baía Norte – um cenário em constante mudança, como o de um jogo dinâmico. Seu olhar se perdia na vista da beira-mar. Eles ainda estavam marejados, recentemente tocados por memórias que pareciam ter sido afastadas, mas nunca realmente esquecidas, de um homem caindo dos céus, cinco anos atrás. Eram como flashbacks de uma cutscene profundamente emocional que motivou sua campanha inicial na vida real.

O episódio que outrora a havia inspirado a lutar com tanto fervor, agora estava obscurecido na mente do público, graças aos esforços da ALTA para apagar da consciência das pessoas o exemplo mais marcante dos perigos e das consequências do HUPGrade.

Se ela permitisse, sua mente mergulharia novamente naquelas lembranças sombrias. Ela se permitiu um momento, imaginando aquela cena de anos atrás transformada em uma missão dentro de um jogo, onde o jogador deveria encontrar uma maneira de salvar o personagem em queda, usando estratégias e habilidades únicas. Nesse jogo mental, ela ponderava as opções, traçava rotas alternativas e coletava itens que poderiam ter alterado o destino do homem. Era um exercício de design de jogos aplicado à realidade, uma maneira de reprocessar a dor e transformá-la em algo com o qual pudesse lidar.

Por um instante ela voltou a ver as asas se desfazendo, o corpo caindo em uma espiral aterrorizante, tirando-a de seu jogo mental. Com um esforço consciente, ela afastou essas imagens da memória.

Desde que a capital do estado de Santa Catarina se transformou no epicentro tecnológico do país, mais e mais edifícios haviam tomado o lugar da paisagem antes paradisíaca. A terra firme estava repleta de imóveis e concreto, enquanto arranha-céus erguiam-se do mar, seus reflexos dançando nas águas cada vez mais poluídas, tingindo o ambiente com cores intensas. As majestosas montanhas da serra catarinense, que um dia enquadravam a paisagem com sua beleza, agora permaneciam quase invisíveis. Tudo isso me entristecia profundamente, e sei que a Allison também.

A outrora ilha da magia continuava perdendo seu encanto, agora reduzida a um mapa de jogo marcado por missões secundárias e eventos de mundo.

Enquanto a chamada "Grande Onda Tec." transfor-mava a vida de pessoas e empresas de cada canto da cidade, ali, em meio às mais de 10 pontes construídas nas últimas décadas, que ligavam vários trechos da ilha ao continente, jazia o antigo cartão postal da capital, a ponte Hercílio Luz, um escombro tombado como patrimônio de um passado bem pouco lembrado, reduzido apenas a um marcador de área para ser explorado. Como designer de games, Allison atribuía a cada local uma história, uma missão a ser cumprida ou um enigma a ser resolvido.

É frustrante observar a humanidade caminhar por direções evitáveis. Nessa era, traficantes de bio-programas testavam novas atualizações em seus corpos quase totalmente modificados pelas aplicações HUPGrade piratas. O resultado deixou muitos deles boiando na correnteza, metros abaixo dos puxados de concreto e abrigos que atualmente tomavam a totalidade da histórica ponte pênsil.

As versões seguras e testadas são privilégios, como sempre, de quem pode pagar mais. "A deep web se tornou concreta." Era sobre isso que Allison pensava, enquanto eu apreciava seu olhar fixar ao longe o que restou da ponte, depois de vislumbrar toda a Baía. Ela suspirou e enrolou com os dedos seus cabelos ondulados, castanhos escuros, com um side cut do lado esquerdo, trançado e preso com alguns adornos indígenas, herança de sua avó Tupi-Guarani. Baixou os olhos para a outra janela, a artificial, com a tela iluminada berrando com urgência por sua atenção. Cada notificação não lidas eram como missões e side quests pipocando na tela de seu HUD, demandando uma ação rápida. Nesses momentos ela se via como uma personagem em um RPG urbano, navegando pelas interfaces do cotidiano, decidindo quais quests aceitar e quais adiar para depois.

Allison: HUPGrade - Identidade ProgramadaWhere stories live. Discover now