Quando acordei, percebi que ele estava me olhando. Seus olhos perspicazes me analisavam em silêncio, deslizando por cada detalhe com uma expressão confusa, quase intrigada. Era como se ele estivesse tentando decifrar um quebra-cabeça cujo significado apenas ele conhecia, algo que apenas a mente dele poderia compreender naquele momento.
— Desde quando você tá aqui? — ele perguntou, sua voz finalmente soando mais lúcida. Não era mais aquele tom grogue de quem acabou de acordar, mas algo mais firme, mais sério, como se estivesse começando a conectar os pontos.
— Desde... — peguei meu celular no bolso da calça, os dedos hesitantes enquanto eu checava as horas. — Hoje, desde as 16 horas.
Ele ergueu a cabeça levemente, cada movimento ainda lento, como se o peso do corpo estivesse tentando resistir. Seus olhos, no entanto, eram rápidos, desceram para minhas mãos, firmemente entrelaçadas ao redor de seu corpo. Ele franziu levemente a testa, como quem se depara com algo que não entende, mas logo ergueu uma sobrancelha, a expressão descontraída.
— Por que você tá se segurando em mim como se fosse um macaco-prego? — perguntou, e eu soltei imediatamente as mãos, meio sem jeito, sentindo o calor subir pelo meu rosto.
— Eu não estava reclamando. — completou com um sorriso de canto que parecia iluminar o quarto inteiro, mesmo naquele momento tenso.
Encarei-o, tentando decifrar se aquele sorriso era genuíno ou uma tentativa de suavizar o clima. Seus olhos, no entanto, eram os mesmos de antes, do mesmo jeito de todas às vezes em que estivemos assim, tão próximos. Era como voltar no tempo, àquele exato instante em que, deitados juntos na mesma cama, tudo parecia simples e possível.
— Tenho que te pedir desculpas pelo que falei da última vez em que estivemos em um hospital. Fui idiota e grosseiro com você. — Ele respirou fundo, desviando o olhar por um segundo antes de voltar a me encarar.
— Tá tudo bem, eu...
— Não, não está. — Ele me interrompeu com uma veemência inesperada. — Dizer que você morreu para mim foi pesado, Clara. E pesa ainda mais agora, vendo você aqui, depois de horas de voo, cuidando de mim como se eu fosse um bebê. Isso não é justo com você.
Não soube o que responder. Apenas deitei minha cabeça em seu peito, ouvindo os batimentos do seu coração, que pareciam mais altos e rápidos do que eu esperava. Era reconfortante, mesmo na confusão daquele momento. Minhas unhas traçavam linhas imaginárias pela sua pele, um gesto pequeno e involuntário que parecia dizer tudo o que eu não conseguia colocar em palavras.
— Sinto muito pelo o que eu disse. Eu nunca quis transformar aquilo em verdade.
Eu apenas concordei com a cabeça, incapaz de encontrar algo que pudesse aliviar o peso de suas palavras. Ficamos assim, em silêncio, ouvindo a respiração um do outro. A tensão era palpável, mas, ao mesmo tempo, havia algo de profundamente íntimo naquele silêncio, como se cada batida do seu coração estivesse tentando preencher as lacunas deixadas pelas palavras não ditas.
— Você tem saído com alguém? — ele perguntou, quebrando o silêncio abruptamente.
Por um instante, Caroline veio à minha cabeça. Eu hesitei, ponderando se deveria contar ou não. Mas, por via das dúvidas, achei melhor ser honesta.
— Sim. Com uma garota. — admiti, sentindo meu coração acelerar enquanto esperava sua reação.
Ele ficou em silêncio, e por um momento temi o pior. Imaginei ele me xingando mentalmente, ou pior, se afastando de mim de alguma forma.
— Essa realmente me pegou. — ele disse, finalmente, me encarando com uma expressão indecifrável. — Nunca te imaginei sendo... sei lá, alguém com dupla sexualidade.
— Dupla sexualidade? — arqueei uma sobrancelha, surpresa e levemente divertida.
— É, sabe, quando gosta dos dois, homem e mulher. — explicou de forma quase inocente, e eu soltei uma risada sincera, a mais genuína que tive em dias.
— Se chama bissexualidade, Joaquín. — corrigi, ainda rindo.
Ele pareceu pensar sobre isso, processando a informação como se fosse uma nova peça daquele quebra-cabeça que ele tanto tentava decifrar.
— E como você descobriu isso? Que gostava? Ou sempre soube?
— Literalmente, na prática. — tentei desviar, mas ele era rápido.
— Vocês transaram. — afirmou, mais do que perguntou, e eu senti meu corpo colapsar de vergonha.
— Isso é um problema para você? — perguntei, minha voz saindo mais hesitante do que eu queria.
— Claro que é. — ele disse, e meu coração despencou. Eu me afastei.
— Eu não imaginei que você seria o tipo de pessoa que teria preconceito com isso. — falei, tentando manter a firmeza na voz.
— Eu não tenho preconceito com a sua sexualidade. Só fico preocupado com a concorrência.
Parecia uma reviravolta tão absurda que, mesmo no meio da tensão, eu ri. Concorrência?
— Você nunca teve concorrente. Não a sua altura. — falei, ainda rindo.
— Não quero ter que citar o nome dele. — ele disse, e o silêncio voltou a nos envolver.
— Aquilo foi um erro. — balancei a cabeça, tentando afastar os fantasmas do passado. — Richard não está à sua altura. Eu fiz planos com você, Joaquín. Tive sensações e sentimentos que nunca tive com mais ninguém.
Fiz uma pausa, enquanto tentava encontrar palavras que o fizessem entender.
— Eu dividi meus medos, minhas incertezas e o meu mundo com você. Você faz parte de mim, assim como faço parte de você.
Ele abriu a boca para falar, mas eu o interrompi antes que minha coragem escapasse.
— Richard foi um momento que escolhi esquecer. Você é uma vida inteira, Joaquín.
Ele abriu a boca, mas a fechou novamente, como se as palavras estivessem entaladas, incapazes de sair. Seus olhos me encaravam com uma mistura de dor e esperança, como se ele também estivesse buscando as palavras certas para expressar o que sentia. O silêncio entre nós era tão denso que parecia um terceiro elemento naquele quarto.
— Eu não sou perfeito, Clara. Não tão perfeito quanto você parece deixa parecer. — ele começou, sua voz baixa, quase um sussurro. — Você me enxerga como se eu fosse algo... inalcançável de tão bom ou incrível, mas a verdade é que sou cheio de falhas. Sempre fui. E, honestamente, às vezes acho que você merece algo melhor.
Respirei fundo, tentando controlar o turbilhão de emoções que ameaçava me dominar.
— Não que isso me faça querer desistir de você, mas me deixa com medo, de que um dia você perceba e vá embora.
— Não existe "algo melhor", Joaquín. Eu não quero perfeição, nunca quis. — minha voz tremeu um pouco quando percebi o que estava acontecendo ali, mas continuei. — O que eu quero é você. Mesmo com seus defeitos, com seus medos, com tudo. Porque você me faz sentir viva, você é a única pessoa com quem eu posso ser eu mesma.
Ele passou as mãos pelo rosto, como se estivesse tentando se livrar de um peso invisível.
— E eu estraguei tudo. Afastei você. Disse coisas que nem mesmo eu acredito. Como faço isso desaparecer? Como eu posso... consertar o que quebrei? Eu simplesmente não consigo te olhar e não lembrar de tudo o que falei e causei a voce.