COADJUVANTE DO TEMPO

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O tempo passou. Mas, embora seja ainda, de alguma forma, mensurável, não deixa de perder sua particularidade de interpretação e significado. E para Otto, o tempo que passou foi apenas o suficiente. Isso bastava para qualquer caminhar de ponteiros ou desfolhar de calendários.

Tentava retomar a sua vida, com a mesma ariana ganância e determinação dos belos frutos que colorem a primavera. Mas a apetitosa casca forjava a polpa podre que aguardava os famintos olhos que ousassem prová-la. Poucas esperanças de voltar a vida à normalidade sobreviviam se os seus sonhos eram violentamente interrompidos pelo vício que o cercava e dolorosamente o escravizava às finas divisas do ser e estar; do ser (racional) e estar (certo). E dúvidas era tudo o que restava (a persegui-lo).

Acordava, religiosamente, todos os dias às seis e meia da manhã, mas despertava mesmo durante o banho – morno o bastante para, enquanto barbeava-se guiado por um rumo cego, mas decorado, transformar seu rosto em um vulto revelado pelo vapor que encobria os espelhos – e que o colocava na estreita fronteira entre a preguiça e a adrenalina de estancar o atraso: correr contra o tempo era o único esporte que colecionava heroicas marcas, acredite.

Otto vivia em um antigo apartamento na região de Santana, de paredes tão espessas quanto frias, cujas metragem e planta o qualificavam como um achado ímpar. No andar térreo, funcionava a mais tradicional padaria dos quarteirões que ali se traçavam – na opinião do fotógrafo, é claro, que mesmo dentre as habilidades ainda desconhecidas, o dom pela culinária continuaria sem chances de classificação para o seu ranking de talentos. Era aquele o seu ponto de encontro diário com sua própria rotina, onde tomava seu já previsível café da manhã de pão com manteiga na chapa e meia xícara de café com leite: raízes paulistanas que o fincavam à sua realidade, enquanto alguém a ser e a existir.

Eram momentos rotineiros, mas ainda singulares por ser o (re) princípio de sua história que escrevia ali; fosse um novo começo ou a retomada de algum outro "durante", afinal de contas, mais uma etapa a ser vivida o aguardava do lado de fora. Enfim, aquela era a tão esperada hora em que sua vida entrava em pausa sem culpas e nem desculpas por se esquecer de ser gente por alguns poucos instantes e tornar-se um mero observador da vida que corria solta por ali. Coadjuvante do tempo: era assim que ele se entendia e se justificava na transparente vontade de ser, absolutamente, nada. Mesmo que por um breve transcorrer do tempo. O problema, é que este tempo andava postergando demais.

***

O jovem fotógrafo perambulava entre agências de notícias e de propaganda, onde era sempre bem-vindo diante da segurança do esmero com que cumpria suas pautas, embora, em um passado recente, sua razão parecesse condenada a viver no cativeiro das lentes pelas quais enxergava a vida que passava.

Ao despir-se de seu instrumento de trabalho, despia-se também do bom senso e razão que sempre foram sua marca registrada enquanto profissional. Por debaixo daquele personagem que vivia atrasado para cumprir todos os compromissos de sua agenda, era apenas emoção pronta para se confortar nos lençóis da alma.

O vão que existia entre seus dedos já não era maior e nem menor que o vazio que morava em seu peito e ecoava no estranho vazio de seus pensamentos e lembranças. A maior distância que seu mundo percorria, era das suas largas mãos que envolviam sua cabeça – aterrissando na fronte e deslizando firmemente até a nuca -, em um triste traduzir de procura e silêncio. Estava só. E sabia que assim deveria ser. Firmara matrimônio com seu próprio ego e jurara diante do espelho - na ironia e no sarcasmo - fidelidade a si mesmo.

O silêncio lhe dizia mais que palavras e estava certo de que, naquele momento, era necessário fazê-lo seu oráculo. Vestir-se de estratégia era necessário, mas revestir-se frieza era vital. Entretanto, se todo vilão deixa a máscara afrouxar – mesmo que na cegueira da noite -, sempre haverá alguém pronto a tatear os seus traços. E aquele rapaz que se acalmava no próprio desespero, deixava com que o tempo borrasse os seus contornos, transparecendo dúvidas a seu respeito enquanto vida a ser vivida. O tempo era o bandido sem disfarces o qual, mesmo no ponto de fuga de seu próprio horizonte, era ainda incapaz de enxergar, porque entregara-se à inércia de braços abertos prontos para fecharem-se feito rosa e escudo, como a saldar uma dívida que fizera consigo mesmo.

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⏰ Last updated: Mar 12, 2019 ⏰

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