OO5 - Diálogo com a morte

12 1 0
                                    

— Você de novo? — A Morte já não parecia mais tão surpresa em me ver, mas a sua saudação sempre aparecia no início de uma nova história entre nós.

— Sentiu minha falta? — Retirei de cima do banco alguns papéis em que estavam nomes de pessoas que iam morrer na semana que vem.

— Passou-se apenas dezoito anos desde a última vez que você pisou aqui, miserável. Esperava que dessa vez só voltássemos a nos encontrar quando um maldito carro te atropelasse aos cinquenta anos.

— Você é uma maldita mentirosa. Disse que haveria coisas incríveis esperando por mim nessa nova vida. — Sentei no lugar onde estavam os papéis. — Eis que chego lá e me deparo com pulmões fracos, um corpo que causaria inveja a uma laranja, e uma mente facilmente manipulável.

— Não, não. Quando te mandei de volta, garanti que nessa vida houvesse algo que te segurasse por lá ao menos por trinta anos. Você fez merda.

— E quem sou eu para contrariar a Morte?

— Um morto.

— Exato.

— Como foi que morreu dessa vez? — Agora, o vulto enegrecido sentava-se ao meu lado, porém bem distante.

— Qual acharia mais interessante: esmagado por um elevador, pisoteado durante um incêndio, ou suicídio?

— O elevador me faria gargalhar por três vidas suas. — Os dedos ossudos saíram do buraco da manga daquele véu negro e começaram a folhear a papelada. — Todavia, pelo seu histórico, diria que se jogou do terraço. — Os ossos voltaram a se esconder por dentro das mangas. — De novo.

— Ter as minhas entranhas presas a um elevador seria algo realmente cômico, mas não. Sem elevador e sem terraço.

— Ok, você tinha minha curiosidade, agora tem a minha atenção. — Após esses dizeres, cruzou as pern... Cruzou os ossos e manteve-se estática.

— Até que para a Morte, você tem muita cultura. Sempre achei que fosse a maior aniquiladora de cultura.

— Por quê? Porque eu trouxe Hendrix, Jopplin, Jackson para cantarem para mim? Eu também tenho direito a ouvir música boa.

— Você não tem ouvidos, Morte.

— E você não tem coração. Fale logo sobre a sua maldita morte.

— Eu estava deitado na minha cama, assistindo a um filme. "Kill Bill", eu recomendo...

— Vá direto ao assunto.

— E então eu recebi uma ligação. Meus pais haviam sofrido um acidente de carro e os dois não sobreviveram.

— Ah, sim. — Ela pegou um papel aleatório e marcou "x" em dois nomes.

— Eu peguei o carro e fui até a casa da minha namorada, porque eu precisava de alguém para ir comigo. Chegando lá, encontrei-a na cama com um cara.

— Heh, morto e chifrudo. Prossiga.

— Saí de lá o mais rápido que pude e voltei para casa. Ao chegar, separei todos os remédios que consegui encontrar e uma garrafa de dois litros com água.

— Sabia.

— Não terminei. Antes de fazer qualquer coisa, quis ter uma última refeição. Fiz um pouco de pipoca de micro-ondas, e a levei para a sala. Comi, comi, comi, comi e comi. Quando a tigela estava quase vazia, comecei a sufocar. Havia cascas de milho na garganta e respirar estava difícil. Chegou ao ponto da minha garganta ficar tão apertada, tão pequena, que o meu grito de socorro virou um pequeno sussurro.

— E aí?

— É isso.

— Você realmente morreu por causa de pipoca?

— Sim.

— Nem mil elevadores seriam tão engraçados assim. — O véu tremia. Era possível perceber que a desgraçada ria. — Você é patético.

— Ok. Pode me colocar em uma vida decente? Onde o meu corpo não tenha defeitos, a minha mente não seja uma merda e eu nem tenha que voltar aqui de novo antes de noventa anos?

— Poderia te fazer um milionário, mas que graça teria? Além do mais, conhece as regras: tens que esperar uma semana antes de voltar.

— Ok, e o que eu vou fazer até lá?

— Quer jogar xadrez? — Uma mesa com um tabuleiro se materializou na nossa frente.

— Se eu vencer, nasço rico e bonito.

— Se perder, nasce pobre e fodido.

— A aposta de sempre então. — Começamos a arrumar as peças para mais um jogo entre amigos de longa data.

Se a barra é pesada, esses textos são maisWhere stories live. Discover now