Livro de Leviatã parte 2

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E dado que os sonhos são causados pela perturbação de algumas das parte internas do corpo, perturbações diversas têm de causar sonhos diversos. E daqui se segue que estar deitado com frio provoca sonhos de terror e faz surgir o pensamento e a imagem de alguns objetos temerosos (sendo recíprocos o movimento do cérebro para as partes internas, e das partes internas para o cérebro). E que do mesmo modo que a cólera provoca, quando estamos acordados, calor em alugas partes do corpo, assim também, quando estamos dormindo, o excesso de calor de algumas das partes provoca a cólera, e faz surgir no cérebro a imaginação de um inimigo. Da mesma maneira, tal como a bondade natural causa deseje quando estamos despertos, e o desejo provoca calor em certas outras partes do corpo, assim também o excesso de calor nessas partes, enquanto dormimos, faz surgir no cérebro uma imaginação de alguma bondade manifestada. Em suma nossos sonhos são o reverso de nossas imaginações despertas, iniciando-se o movimento por um lado quando estamos acordados, e por outro quando sonhamos.

Observa-se a maior dificuldade em discernir o sonho dos pensamentos despertos quando, por qualquer razão, nos apercebemos de que não dormimos, o que é fácil de acontecer a um homem cheio de pensamentos terríveis e cuja consciência se encontra muito perturbada, e dorme sem mesmo ir para a cama ou tirar a roupa, como alguém que cabeceia numa cadeira. Pois aquele que se esforça por dormir e cuidadosamente se deita para adormecer, no caso de lhe aparecer alguma ilusão inesperada e extravagante, só a pode pensar como um sonho. Lemos acerca de Marcos Bruto (aquele a quem a vida foi concedida por Júlio César e que foi também o seu valido, e que apesar disso o matou) de que maneira em Filipi, na noite antes da batalha contra César Augusto, viu uma tremenda aparição, que é freqüentemente narrada pelos historiadores como uma visão, mas, consideradas as circunstâncias, podemos facilmente ajuizar que nada mais foi do que um curto sonho. Pois estando em sua tenda, pensativo e perturbado com o horror de seu ato temerário, não lhe foi difícil, ao dormitar no frio, sonhar com aquilo que mais o atemorizava, e esse temor, assim como gradualmente o fez acordar, também gradualmente deve ter feito a aparição desaparecer. E, não tendo nenhuma certeza de ter dormido, não podia ter qualquer razão para pensá-la como um sonho, ou qualquer outra coisa que não fosse uma visão. E isto não acontece raramente, pois mesmo aqueles que estão perfeitamente acordados, se foram temerosos e supersticiosos, se se encontrarem possuídos por contos de horror, e estiverem sozinhos no escuro,estão sujeitos a tais ilusões e julgam ver espíritos e fantasmas de pessoas mortas passeando nos cemitérios, quando ou é apenas ilusão deles, ou então a velhacaria de algumas pessoas que se servem desse temor supersticioso para andar disfarçados de noite a caminho de lugares que não gostariam que se soubesse serem por elas frequentados.


Desta ignorância quanto à distinção entre os sonhos, e outras ilusões fortes, e a visão e a sensação, surgiu, no passado, a maior parte da religião dos gentios, os quais adoravam sátiros, faunos, ninfas, e outros seres semelhantes, e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas, fantasmas, e gnomos, e do poder das feiticeiras. Pois, no que se refere às feiticeiras, não penso que sua feitiçaria seja algum poder verdadeiro; mas contudo elas são justamente punidas,pela falsa crença que possuem, acrescentada ao seu objetivo de a praticarem se puderem, estando sua atividade mais próxima de uma nova religião do que de uma arte ou uma ciência. E quanto às fadas e fantasmas ambulantes, a idéia deles foi, penso, com o objetivo ou expresso ou não refutado, de manter o uso do exorcismo, das cruzes, da água benta, e outras tantas invenções de homens religiosos. Contudo, não há dúvida de que Deus pode provocar aparições não naturais, mas não é questão de dogma na fé cristã que ele as provoque com tanta freqüência que os homens as devam temer mais do que temem a permanência, ou a modificação do curso da Natureza, que ele também pode deter e mudar. Mas homens perversos, com o pretexto de que Deus nada pode fazer, levam a sua ousadia ao ponto de afirmarem seja o que for que lhes convenha, muito embora saibam que é mentira. Cabe ao homem sensato só acreditar naquilo que a justa razão lhe apontar como crível. Se desaparecesse este temor supersticioso dos espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e muitas outras coisas dele decorrentes, graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediência civil. E esta devia ser a tarefa das Escolas, mas elas pelo contrário alimentam tal doutrina. Pois (ignorando o que seja a imaginação, ou a sensação) aquilo que recebem, ensinam: uns dizendo que as imaginações surgem deles mesmos e não têm causa; outros afirmando que elas surgem mais comumente da vontade, e que os bons pensamentos são insuflados (inspirados) no homem por Deus, e os maus pensamentos pelo Diabo. Ou então que os bons pensamentos são despejados (infundidos) no homem por Deus, e os maus pensamentos pelo Diabo. Alguns dizem que os sentidos recebem as espécies das coisas, e as transmitem ao sentido comum, e o sentido comum as transmite por sua vez à fantasia, e a fantasia à memória, e a memória ao juízo, tal como coisas passando de mão em mão, com muitas palavras que nada ajudam à compreensão. A imaginação que surge no homem (ou qualquer outra criatura dotada da faculdade de imaginar) pelas palavras, ou quaisquer outros sinais voluntários, é o que vulgarmente chamamos entendimento, e é comum ao homem e aos outros animais. Pois um cão treinado entenderá o chamamento ou a reprimenda do dono, e o mesmo acontece com outros animais. Aquele entendimento que é próprio do homem é o entendimento não só de sua vontade, mas também de suas concepções e pensamentos, pela seqüência e contextura dos nomes das coisas em afirmações, negações, e outras formas de discurso, e deste tipo de entendimentos falarei mais adiante.

A verdade sobre SatanismoWhere stories live. Discover now