Capítulo 1: Kethlin

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Se as meninas da minha classe souberem que eu uso shampoo infantil estou frita. Ou pior, morta. Vou ser o alvo principal de fofoca. Pois é, engraçado, estou de baixo do chuveiro refletindo sobre isso agora e não paro de pensar no shampoo. O que é que tem de errado? É só um shampoo normal com um plástico colado na embalagem cheio de borboletas e menininhas sorrindo, além disso, vem mais do que os outros e é de boa qualidade com preço justo. Não entendo como as garotas podem zombar da gente só por usar um shampoo com um rótulo colorido escrito SHAMPOO INFANTIL. Sinceramente, não entendo as adolescentes de hoje. Estou com 16 anos e não vejo graça em ver os outros pela aparência e não pelo que têm dentro assim como elas vêem.

Então tá. Deixe-me contar sobre minha vida já que teimei com você sobre minha filosofia. Já que você está aqui para fuxicar. Meu nome é Kethlin, estou no 2°ano do Ensino Médio. Gosto da minha cidade, escola (mas nem tanto), ah também gosto dos meus pais. Mas o pior de tudo apesar de eu parecer legal é que eu sou uma nerd, tímida e sem amigos. E pra completar, eu sou ruiva, nasci com o cabelo quase laranjado e os olhos verdes-azulados com sarda na cara. Todo o dia na escola parece chato apesar de eu gostar dela. Só eu presto atenção nas aulas enquanto o resto fica conversando, se maquiando, se beijando, mexendo ou falando no celular... E nenhum professor chama a atenção de ninguém! Ninguém nunca conversou comigo, a não ser pra dizer "empresta o lápis?" e depois que devolve não diz nem ao menos obrigado. Só acalma no recreio, onde posso comprar um lanche e sentar sozinha. Ops, quer dizer, nem no recreio acalma, sempre tem alguém pedindo para eu dividir o lanche e como sou muito tímida nunca pude dizer um não. Nem na Educação Física tenho calma, pois sou goleira, adoro futebol e quando eu não defendo o gol todos do meu time parecem ficar me olhando torto e se cochichando. É. Minha vida é assim. Mas por um lado. Cercada de playboyzinhos e peruazinhas loiras, morenas e ruivas. Bem, quando eu disse ruivas quis falar das que pintam o cabelo de vermelho e não de ruivas naturais como eu.Todas elas querem ser a melhor, com suas maquiagens que até parecem terem nascido com elas na cara e com seus jeans e tênis caro.

Mas, por outro lado... A minha vida não é o que parece. Meus pais estão quase todo fim de semana indo a festas sertanejas e eu adoro! Ah! Rodeios! Festas Juninas! Country bar! Como adoro ser caipira! Eu sempre os acompanho, não perco uma. Eles vão para um canto e eu sumo. Sempre estou de minissaia e nunca desisto de usar uma saia curta. Eu amo dançar e lá todo mundo me conhece, eles gostam da minha dança e às vezes param pra me olhar ou até começam a me imitar. Acho que sou a pessoa mais popular desse tipo de festa. Contudo, não é só pela dança que eu sou conhecida, mas, deixe eu te contar um segredo: eu sou a maior peguete de cantores sertanejos do mundo! Vai, todos os cantores sertanejos gatos que lhe vierem na cabeça eu digo que já peguei. Menos os velhos, casados ou comprometidos ou bem, até que tem alguns que botam chifres em suas namoradas ou esposas para ficar comigo! Não acredito! Parece que até sou uma celebridade nesse lado. Ah, mas não me chame de putinha, eu sei bem o que estou fazendo, apenas beijos, abraços e nada mais. Sei me controlar e os controlar. Julgar os outros é muito, muito feio, hein? E eu sempre desejo que nunca, mais nunca esses mundos se encontrem. Não são um contraste esses dois lados opostos da minha vida?

Olho para o relógio (um bem grande que o pai colocou no banheiro para a gente não demorar no banho) e vejo que estou quase me atrasando. Esse simplesmente foi o banho mais demorado da minha vida! Ainda bem que é sexta. Adoro sexta-feira. Sabe por quê? Porque amanhã é sábado! E sábado é dia de festa de peão! Finalmente um motivo para se contentar. Eu vou mudar de personalidade! Hoje é o último dia da semana que vou ter que bancar a lesada, tosca e retardada da nerd, tímida e sem amigos, desajeitada e desastrada. Peraí, eu nem falei que sou desajeitada e desastrada? Claro isso faz parte de ser tímida, nerd e sem amigos. Parecem tanto essas palavras, não é?

Bom, agora tenho que sair do banheiro e descer tomar café da manhã com meus pais e o chato do meu irmão. Se bem que... Meus pais não ligam de eu ser uma peguete de sertanejos. Eles até aceitam se eu quiser trazer meu namorado pra casa, jantar. Um dia vou ter que casar mesmo.

As horas passam devagar no colégio. Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac. Por que o que é bom dura pouco? E o que é ruim demora demais? Que droga, não consigo me concentrar nos meus pensamentos com o barulho da turma. O professor já passou atividades e ninguém está a fim de resolvê-las e muito menos de copiá-las. O pior é que parece que tá todo o mundo olhando torto pra mim, todo o mundo está falando ou fofocando de mim, todo o mundo está rindo de mim. É uma merda mesmo esse tempo que não passa.

-Kethlin!

Ouço o meu nome. Ah, é o professor, ele quer que eu vá buscar papel sulfite na biblioteca. Essa não! Todo o mundo vai reparar no meu jeito de levantar, de andar e de dizer "sim professor". Mas não posso recusar.

-Sim, está bem, professor!

Fui. Minha pele formigava quase me paralisando. Espero que nada tenha acontecido. Não olhei para trás. Está ventando muito aqui fora, ainda bem que sempre faço rabo-de-cavalo no meu cabelo laranjado. E parece que nunca vim para a escola de cabelo solto. Espero que amanhã não chova. Não quero estragar esse dia que tanto espero. Conto os segundos desde segunda- feira.

Ainda bem que não tem ninguém na biblioteca. Vou pegar essa pilha de sulfite que tá em cima da bancada e vazar. Espero que ninguém veja, pois não quero me explicar pelo roubo das folhas. Saí.

O céu está limpo; não há nuvens, pode ser que não chova amanhã. Mas está ventando muito, talvez o vento traga as nuvens-chuvas pra cá. Não! Tenho que pensar positivo. Amanhã não vai chover e eu vou brilhar como uma estrela.

Cheguei à porta da sala. O que será que pensam os adolescentes alienados? Espero que ninguém se manifeste sobre meu jeito de entrar.

Mas que droga! Os degraus! Como fui esquecer os degraus! Estava tão empolgada no pensamento dos outros que esqueci esses... Degraus! Levei um tombão e aí todo mundo riu! Principalmente a escandalosa da Letícia, a loira falsificada, super popular, peguete, egoísta e egocêntrica. Ela sim se acha a tal, a gostosona, a melhor das melhores, com sua maquiagem forte todo o santo dia, toda cheia de frescuras, com o seu jeans todo modernizado e seu tênis de 2000000 pilas. Ninguém pode encostar o dedo nela que ela já sai escandalizando. Perdi a conta de quantas vezes ela riu de mim ou gritou comigo. É dela de quem começa a fofoca. Odeio-a com O maiúsculo. Sei que ela não sabe do que eu sou por dentro porque por fora, pelo meu rótulo, está escrito lesada, tosca e retardada e por dentro há um shampoo cheiroso, ótimo e famoso pelo que eu sei. Ela jamais descobrirá. Porque ela só julga os outros pelo rótulo e não pelo que têm dentro.

Aquele momento sutil me deu vontade de chorar. Caí esparramando as folhas com os cotovelos no chão. Todos acharam um sarro. Acho que até o professor achou. Eu apenas segurei a raiva, juntei o sulfite, entreguei ao professor – que nem "obrigado" me disse – e sentei dura feita uma estátua. Escutei os sussurros da turma. Olhei para a esquerda e vi que era a Letícia e mais algumas meninas conversando, rindo e olhando torto para mim. Não era de se duvidar de que elas estavam falando de mim. Abaixei-me debaixo da carteira fingindo fuxicar em minha mochila e soltei uma lágrima clara dos meus olhos, mas só uma. Segurei as outras para que ninguém notasse. No momento, não suportei e percebi que iria chorar por isso me abaixei. A aula de artes é ridícula.


Ambas as minhas VidasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora