168 East 32nd Street

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"Você tem toda a razão, Lennie Tristano!"

O pianista pôs o dedo sobre a agulha do metrônomo, e perguntou a seu aluno de quem era a voz. O rapaz, satisfeito pela interrupção do exercício penoso, sussurrou que era um "nigger com um trompete, senhor".

"Foi o que pensei", disse o mestre. "Soa como um nigger com trompete. Você estava em dó menor, ele falou em lá sustenido. Azul para amarelo. Nada mal. Tente isso.", e soltou o dedo do metrônomo. O rapaz suspirou e voltou às teclas tentando encontrar nas teclas o som que só seu mestre enxergava. 

Compassos depois, Lennie Tristano virou-se para o lado de onde tinha vindo a voz.

"Em que posso ajudá-lo, trompetista? E, mais importante, no que é que eu tenho razão?"

"Eu sou Mo' Desmond. E assisti a seu show. E concordo".


(Na noite anterior, assim que chegou à cidade, Mo' foi assistir uma das raras apresentações de Lennie Tristano, na recém inaugurada Birdland. Para acordar o público encharcado de martinis, Lennie vez ou outra forçava-se a uma brincadeira, entre elas uma sátira ao então popular estilo scat do be-bop, ao som de "Let's call the whole thing off", que soava mais ou menos assim:

You say Bop-lab-bing-bong-da-da-daba-du-biri-boro-beng-bong-ping-ping-chewing-gum, I say Labapbop-tung-teng-ping-pong-hang-tang-ching-chang-chop-shuey-pork-chopp-gang-bang-big-ball." e terminava com o pianista exangue, pedindo "let's call the whole yabadabaduba-po-bbopre-bobarribaarribachangbenloolayabatubat-tubapt-bop-a-duda-bin-bing-BING-BOP — damm'it! — OFF.

Era uma piada um tanto forçada que destoava do resto da apresentação extra-cool do pianista. E, mais grave, o que era apenas uma rotina cômica levou Mo' Desmond a considerar a sério que Tristano era um detrator do BeBop. Isto é, um companheiro de armas. Ou alguém com quem ele pode falar —mal — do BeBop.)


O maestro estava num de seus melhores dias e deixou o petulante Mo' falar, botar a mágoa para fora. Ouviu sua peroração em prol do jazz puro, o jazz cristalino, a maestria de um som lapidado delicada e cuidadosamente, o tecido harmônico e o cerzido melódico. E sua crítica angustiada ao BeBop e a todos que queriam transformar o jazz em uma gagueira apoplética, como o execrável Clark Terry, e esse irresponsável do Miles Davis. Não tinham respeito pelo instrumento!

"Afinal, você veio aqui na escola para aprender a tocar alguma coisa, kid?"

"Eu sou trompetista. E sou mais velho que você."

Assim começou uma relação (amizade?) intensa e assimétrica entre o petulante trompetista e o pianista tranquilo.


Um dos mais recorrentes adjetivos ligados a Lennie Tristano é overlooked. "Sobrevisto", alguém a quem não se viu com a necessária atenção. Alguém a quem se viu, de relance, mas a quem não se enxergou com o devido cuidado. Alguém que se dedicasse a ver a escassa obra do pianista italo-americano enxergaria uma grata combinação de rigor técnico com coragem inovativa. Enxergaria um pianista de concerto, cria do imaculado Conservatório de Chicago, que ousava com os parcos recursos técnicos da época, alterando a velocidade da gravação e sobrepondo overdubs, como na faixa que tem por título o endereço de seu encontro com Mo': East 32 street. Se era um artista à frente de seu tempo, hoje esse pianista — que ficou cego aos quatro anos de idade e passou a vida tentando reproduzir nas notas sua lembrança das cores — é "sobrevisto".

Na virada para a década de 1950, Lennie Tristano tinha desacelerado seu lado concertista para se concentrar em seu lado de professor, garantir uma renda mais estável e salvar seu casamento. À época da visita de Mo', nada estava dando muito certo: a Tristano School of Jazz estava para se mudar para o Queens e a senhora Tristano já tinha trocado a fechadura de casa. Sorte para a Música. Sem ter que voltar para casa para a patroa, Tristano passou aquele inverno desmontando a escola e varando a noite em tertúlias musicais com seus alunos queridos. E com Mo' Desmond. Com Mo', Tristano sabia que a pegada era diferente. Com Mo' era mais "cerebral". Nada de grandes arroubos improvisatórios e emotivos. Em compensação, Mo' retribuía em seu trompete soluções melódicas ríspidas e imbricadas, elegantes como um arabesco e eficientes como um algoritmo. A melodia funcionava. O professor montava armadilhas harmônicas. 

Mo' resolvia a música. Lennie se empolgava, sentava ao piano e arava as teclas em acordes inusitados para as frases que Mo' jorrava em seu trompete e gargalhava a cada drible sonoro que levava do "kid". E ria, e comemorava com copos seguidos de bourbon.

Enquanto o pianista cego bebia sorrindo, o trompetista negro o encarava a seco. Já tinha calculado que seu mentor estava para traí-lo...


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No próximo capítulo, dissonâncias, agressões e traições. Participação especial de John Coltrane. 



Mo'Where stories live. Discover now