Prólogo

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Oceano Atlântico
1 de Novembro de 1755
Dia de Todos os Santos


Os primeiros raios de sol refletiam na superfície ondulada do oceano manchando as águas de fogo. Era o próprio Inferno, pensava Augusto, um aperto no coração. É o destino que nos aguarda..

- Gonçalo?

- É o local correto, capitão. Ou ao menos é o mais próximo que chegaremos dele.

- Terá de ser o suficiente.

Augusto forçou-se a se afastar da amurada de seu navio e caminhou para onde os marinheiros depositavam a caixa. Não era nem grande, nem pesada, mas tinha demandado mais trabalho que um carregamento de pólvora. Sem aguardar ordens, os marinheiros começaram a forçar a tampa aberta. Não era eficiência, mas sim o desejo de cumprir logo a missão e abandonar este lugar.

A tampa foi removida, mas nenhum dos marinheiros se atreveu a olhar em seu interior. Entreolhavam-se sem encarar o imediato ou o capitão, como se fazê-lo atrairia a ordem de retirar de lá seu conteúdo.

O capitão não tinha como julgá-los. Assentiu com a cabeça, e o imediato gritou as ordens. Um dos homens, mais por desespero irracional do que coragem, enfiou os braços dentro da caixa. Tirou do meio da palha seca o tal objeto que tanto temiam.

Visto pela primeira vez ali nas mãos do homem não parecia tão tenebroso quanto esperava. Uma espécie de incensário de bronze, pouco maior que um melão, pendendo por três correntes finas. A superfície era decorada por inscrições em alguma língua antiga, talvez sânscrito, talvez hebráico. Augusto não era um desses descrentes que se envolviam com esse tipo de coisa. Sabia o que era necessário para servir ao rei e a Igreja, e isso deveria ser o suficiente para qualquer homem temente a Deus.

O marinheiro não conseguia tirar os olhos do objeto em suas mãos, como se temeroso de, se o fizesse, algo sairia dali de dentro. Gonçalo o chamou, e novamente, em tom mais ríspido, para que o homem o ouvisse. Apontou com o queixo na direção da amurada, e o marinheiro assentiu sem nada dizer. Caminhou a passos lentos e cautelosos, então abaixou-se e colocou o artefato no convés.

De onde estava, agora desconfortavelmente perto do capitão, o artefato mostrava mais detalhes. Parecia um cântaro de vinho. Tinha um gargalo no topo, selado por uma tampa de bronze na forma de um sino e um lacre que mais lembrava a própria serpente do Éden. Não era antigo como pensou. Tinha a aparência de novo, recém forjado.

Que terminassem aquilo de uma vez.

Os outros marinheiros se aproximaram, trazendo pesos e cordas. Começaram a amarrá-los nas laterais do artefato, usando suas protuberâncias e anéis como ganchos.

- Podem trazê-la.

Os marinheiros atenderam mais rápido dessa vez, talvez, assim como ele, mais interessados em terminar com o serviço de uma vez. A prisioneira chegou ao convés em silêncio, o rosto pálido, as lágrimas há muito gastas. As mãos estava presas às costas, mas era desnecessário. Ela nem sequer resistia. Tinha perdido a vontade dias antes quando foi entregue no porto de Lisboa na calada da noite. Não devia ter mais que quinze anos.

As roupas estavam sujas e rasgadas, mas não pelas mãos de qualquer um dos homens do navio. As ordens eram claras: ela deveria permanecer intocada até chegarem a seu objetivo. Não que fossem necessárias. Qualquer um que lhe faltasse com o respeito seria açoitado pelo próprio Augusto.

Foi alimentada e hidratada, mas pouco comeu de verdade. O capitão chegou a temer que morreria a caminho e rezou a Deus que isso não acontecesse. No fundo talvez pensasse exatamente o oposto. Talvez se ela morresse no caminho não precisasse cumprir sua missão.

A prisioneira foi levada até diante do artefato e forçada a se ajoelhar. Naquele momento ela gemeu de surpresa. Os olhos estavam fixos no objeto. Ela não sabia porque estava lá, mas talvez agora tivesse uma ideia.

Um dos marinheiros abriu a tampa do artefato e se afastou. Nenhum deles queria fazer o próximo passo.

Engolindo em seco, o capitão levou a mão à espada. Gonçalo se adianto.

- Deixe-me. Um pecado a mais não mudará meu destino no Juízo Final.

O capitão nada disse. Apenas retirou a mão do cabo da espada, sentindo-se nada aliviado. Iam todos para o Inferno de qualquer jeito.

Fez o sinal da cruz, sabendo que nada adiantaria.

Gonçalo sacou o punhal e sem pensar, talvez porque se o fizesse desistiria, deslizou a lâmina pela pele pálida da garganta da garota. O sangue espirrou forte, atingindo a amurada e o convés. No pânico da morte, ela se debateu, atingindo o artefato com os pés, quase fazendo-o emborcar. O imediato segurou-a pelos cabelos, abaixou sua cabeça, guiando o sangue para o artefato. O jorro vermelho entrou pelo gargalo para o interior do artefato. Encheu-o até a boca.

- Chega, - disse o capitão, sem coragem para continuar olhando.

Gonçalo deitou a prisioneira, pediu desculpas, então perfurou seu coração com o mesmo punhal. Ela rolou os olhos, parou de engasgar com o sangue, parou de se mexer. O sangue continuou a escorrer e tingir o convés de vermelho.

- Vamos, - gritou Gonçalo. - Não temos o dia todo.

Os marinheiros voltaram a se aproximar, alguns dando a volta na poça de sangue que se expandia. Fecharam a tampa do artefato, travaram o lacre. Prenderam às correntes uma corta. Em conjunto ergueram o artefato fazendo o máximo para ignorar o sangue pegajoso escorrendo pelas laterais, então arremessaram o artefato no mar. Ele mergulhou lentamente no oceano rubro, levando pelos pesos e pela culpa.

- Capitão? O que fazemos com ela?

Suspirou fundo. Fez novamente o sinal da cruz.

- Deem a ela um enterro digno.

- Aqui?

O capitão olhou novamente para o oceano. A corda que guiava o artefato até o fundo continuava a descer. Balançou a cabeça.

- Não há nada de digno neste lugar.

O capitão deu as costas para a amurada e seguiu na direção dos seus aposentos. Não queria olhar para trás, não queria pensar no que fizera. Queria apenas esquecer. Esquecer e voltar para casa.

Aquele dia era Dia de Todos os Santos.

Quem sabe talvez eles o perdoassem pelo pior de todos os pecados?

LaicusWhere stories live. Discover now