Capítulo 1

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56 anos depois

Bernardo estava sonhando com ossos espalhados pelo chão de uma igreja quando o disparo do canhão o despertou. Por um instante pensou estar nas trincheiras de Portugal enfrentando os exércitos de Napoleão. Sentiu primeiro o balanço da rede, então o cheiro do mar. Portugal e a guerra tinham ficado para trás.

Tocou o bolso costurado no interior da jaqueta, sentindo lá o pequeno livro que o levou a abandonar seus companheiros e atravessar o Atlântico. Suspirou. Talvez com o fim da viagem chegasse também ao fim os pesadelos sobre aquela fatídica noite que cristão nenhum deveria ter vivido. Saltou para o assoalho de madeira, respirou fundo. Meses abordo e ainda não se sentia inteiramente bem. Subiu a escada apoiado nas anteparas, fechou os olhos ao ser atingido pelo sol enfurecido. Em algum lugar distante outro canhão disparava.

Passou-se um momento de pânico. Cego pela claridade, não via onde estavam nem a origem dos disparos. Cobriu o rosto com as mãos, forçou-se a enxergar. Percebeu, aliviado, que não ouvia sons de correria ou ordens gritadas, não além do normal em um navio como aquele.

Alguém deu-lhe um tapa amigável nas costas. Ouvi a voz do imediato genovês.

- Estão saudando sua chegada, - disse Sérgio com um tom de humor. - Muitas e muitas vezes.

Um terceiro disparo era feito quando Bernardo começava a distinguir detalhes. Estavam no interior de uma baía de águas azuis. Para todos os lados havia montanhas verdes. Algumas poucas ilhas salpicavam as águas do mar. Um grupo de golfinhos saltitava paralelo ao navio, como se competindo com ele. Longe dali, outros navios iam e vinham do único porto visível àquela distância.

Um quarto disparo. Bernardo identificou o forte à sua esquerda, na ponta mais extrema da cidade que era seu destino. Mesmo distante podia ver dezenas de capelas e igrejas, as paredes brancas e as cruzes altas destacadas sobre os telhados das casas coloridas. Na ponta direita um outro forte abria fogo. Perto dali havia uma outra grande construção, talvez um mosteiro.

- Pensei que estivéssemos sendo atacados.

Sérgio riu e balançou a cabeça. Coçou a barba grisalha rala.

- Provavelmente têm algum tipo de cota mensal de pólvora a gastar, para justificar seus salários. Disparam à esmo todo os dias para saudar aqueles que vêm e vão.

E não eram poucos os navios trafegando pela baía. Era de se esperar de uma cidade subitamente feita tão importante naquela terra selvagem. Com a abertura dos portos a colônia tornava-se importante. Importante o suficiente para servir de refúgio para a família real.

- A se julgar pelas bandeiras acreditaria estar aportando na colônia errada.

Sérgio grunhiu algo que parecia significar que concordava. Bernardo quase quis que o capitão tivesse perdido-se e ido parar mais ao norte, nas colônias britânicas. Ao menos isso explicaria porque tantos navios traziam a bandeira do Rei George III ao invés daquela de Dona Maria I.

O som de algo batendo no mar atraiu a atenção de Bernardo. Caminhou até a amurada, apoiando-se. Segurou-se firme com ambas as mãos, temendo perder o equilíbrio ao olhar as águas lá embaixo. Um pequeno bote a remo se afastava das cordas do navio na direção de uma ilha onde um grande número de navios havia atracado.

- Eles informarão de sua chegada, - explicou Sérgio.

Bernardo concordo com a cabeça, os olhos ainda nas bandeiras dos navios. Sentiu calafrios ao lembrar-se das tropas de Napoleão invadindo Portugal.

- Estão por toda a parte, - disse Sérgio, cospindo sobre a amurada.

- Como disse?

- Os britânicos, - apontou com o queixo na direção da ilha. - É impossível não encontrá-los em qualquer porto que se vá em qualquer canto do mundo. São reis do mundo e comportam-se como tal.

LaicusWhere stories live. Discover now