Detetive Encarcerada

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Era um trabalho minucioso e artesanal, garimpar pacientemente todas aquelas informações. Augusto, por exemplo, estava em Minas Gerais para visitar a mãe doente, d. Fabíola. Uma certa Rita o havia ido buscar no aeroporto. Ele tentara, em vão, conseguir a passagem com seu amigo Jorge, que trabalhava numa companhia aérea. Acabara conseguindo os bilhetes por conta própria. Chegar a esse nível de detalhamento exigia pesquisas em várias fontes. As primeiras pistas, ela lera em uma conversa entre Jorge e Augusto no perfil do Facebook deste último:

"Augusto, tenho procurado bastante seus bilhetes esta semana, e não lhe respondi antes porque a disponibilidade de vinda estava zero. Tentei até a última data! D. Fabíola teve uma piora? Mande notícias, estamos muito preocupados aqui. Abraços, amigo!"

Inês estava ciente, desde antes, de que Augusto era mineiro e fazia doutorado na França. Agora, a mensagem lhe dera acesso a novas informações: Jorge trabalhava numa companhia aérea (quiçá numa agência de viagens, caso ainda existissem) — senão, por que Augusto lhe pediria ajuda com as passagens? O destino da viagem seria o Brasil, pois onde mais moraria uma "d. Fabíola"? Aliás, quem seria ela? A mãe de Augusto? Jorge vivia no Brasil, e não na França, como o amigo: escrevera "vinda".

"Valeu, Jorge, eu imaginei que não tivesse conseguido. Estou indo amanhã. Mamãe precisará de cirurgia. Mando notícias de lá. Abraço."

D. Fabíola era mesmo a mãe de Augusto, portanto. E ele arrumara outro modo de conseguir o bilhete. "Lá" devia referir-se a Minas. Sendo esta a terra natal de Augusto, era razoável supor que era onde se encontrava sua mãe; mas não Jorge, pois neste caso não faria sentido Augusto escrever "mando notícias de lá"; antes, escreveria "daí". Três dias depois, Augusto publicou uma nova foto no Instagram. "Desembarque em Belo Horizonte," dizia a legenda. Bingo! Era mesmo em Minas que ele estava!

Inês acessou o Facebook e correu para o perfil de Carolina, esposa de Augusto. Ela havia compartilhado a foto do desembarque do marido, e marcado uma amiga nos comentários: "Oi, Rita! Menina, obrigada por ter ido lá no aeroporto buscar o meu maridinho! Ele deve ter chegado um caco... Muitos beijos!"

"Olá, Carol! Será sempre um prazer recebê-los! A propósito, uma goiabada cascão de encomenda? Beijos."

"Hahahahahahaha! Desta vez, pode deixar, que o moço já tem uma listinha de coisas para trazer. Mas obrigada assim mesmo! Beijinhos!"

Verificando o amigo e o amigo do amigo, confrontava informações, descobria omissões e mentiras, esclarecia nebulosidades. De posse do nome completo de alguém, averiguava em que outras redes sociais ele estava, para não perder nada que soltasse online. Já consultara até currículos lattes na busca de material com que preencher lacunas ou fazer acareações. Tinha um prazer mórbido em tecer intricadas árvores de relações das pessoas que (per)seguia, registradas com esmero em seu computador. Unir duas ou mais dessas árvores, quando descobria que alguns de seus alvos tinham amigos em comum, era a premiação máxima! Com que euforia ligava os dois painéis!

Por vezes, sobretudo quando todos dormiam, passava a chave na porta, imprimia todos aqueles gráficos e os colava na parede do quarto. Deitava-se então na cama, de onde ficava a contemplar sua obra. Sentia-se deusa onisciente de quem nada poderiam esconder. Não tinha controle sobre a própria vida, mas detinha o poder sobre aquelas: com alguns prints, links e frases, reputações iriam rolar. No entanto, suas vítimas nada tinham a temer; estavam seguras com ela, cúmplice benevolente. Denúncias não a interessavam, bastava-lhe observar a comédia humana.

Inês nunca vira Carol, Jorge ou Augusto. Conhecera o último ainda na época do Orkut, num grupo de troca de informações sobre doutorado na Europa, no qual, saliente-se, jamais trocaram qualquer mensagem ou comentário. Nem poderiam, Inês entrando muda e saindo calada. Isso há uns quatro anos. Hoje, Augusto lá estava, em Paris, ao passo que Inês continuava em Recife, de onde acompanhava mudamente a vida dele enquanto ruminava seu despeito e sentimento de injustiça. A vida lhe devia uma conta: ela é quem deveria estar em Paris, não ele! Ela é quem deveria estar aproveitando fins-de-semana em Londres e férias em Berlim. Augusto era uma anta — seus comentários nos fóruns atestavam que ele mal sabia português, como é que agora redigia uma tese em francês?

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