N O V E

19K 1.7K 615
                                    

     Os olhos de Harry White ficaram conhecidos em Londres como verdadeiros instrumentos de inspeção. Havia quem dissesse que nada passava despercebido pelo tom castanho beirando ao verde. Era como se tivesse algum tipo de energia magnética atraindo fatos e evidências para a sua análise minuciosa.

     Angelina Devens, porém, sabia que tudo não passava de histórias contadas para justificar o poder que Harry exercia sobre algumas pessoas - a maior parte delas, ela diria, mulheres solitárias que eram instigadas pelo charme natural do detetive.

     Harry não passava de um manipulador da pior espécie.

     Vendo-o jogado contra o banco do passageiro, Angelina riu. Se os repórteres que escreviam sobre o misterioso, rude e charmoso melhor detetive de Londres vissem o estado em que o homem se encontrava naquele momento, provavelmente abandonariam as suas carreiras. Era deprimente.

     — Já pensou em parar de beber? — ela perguntou, tentando segurar a risada quando o carro passou por alguma pedra e o solavanco fez Harry se assustar.

      As ressacas do homem eram as piores. Angelina não sabia se era ele que bebia demais ou se, simplesmente, o álcool que o detonava naturalmente. Nunca ousou perguntar, no entanto, quantas garrafas de vodca ele costumava misturar com outra bebida qualquer antes de dormir. Sabia que a resposta não seria mais educada do que a que se seguiu:

     — Já pensou em cuidar da sua vida?

     Angelina fez uma curva leve à direita. Não respondeu porque sabia que White bebia para não deixar fantasmas apossarem a sua mente.

     Ele era um homem assombrado.

     — Estou cuidando, meu amor — ela forçou um tom de voz quase fofo. — Você é a minha vida.

     Harry usava óculos escuros, o que escondia o par de olhos responsável por aqueles lendas urbanas espalhadas pela cidade. Ele arrumou o corpo no banco, pestanejando sobre o desconforto, e então respondeu quase incrédulo:

     — Chegamos ao nível mortal de intimidade — era como se ele falasse consigo mesmo. — Aquele no qual eu desejo nunca ter te conhecido.

     Harry abriu o porta-luvas e procurou um remédio para dor de cabeça. Os cantos de seu cérebro latejavam como se alguém estivesse batendo em seu crânio com um martelo, mas nada era pior que o gosto infernizando o fundo de sua garganta. Era como se o ardor do álcool houvesse sobrevivido às três escovadas consecutivas que Harry dera em seus dentes naquela manhã — um claro sinal de que tinha passado dos limites com a bebida na noite passada.

     — Estamos chegando? — perguntou, desanimado por não ter achado nada que pudesse ajudar o seu estado físico e psicológico.

     Angelina olhou o GPS preso no para-brisa do carro, dizendo que não iria demorar muito para estarem na casa dos Spilman. Harry afundou no banco, não se importando mais com o cinto de segurança e todos esses afins. Seu estômago reclamava pela falta de café da manhã, o carro parecia quente demais. Tudo estava um perfeito desastre, e ele sabia que aquela tensão vinha do fato de que ele passaria uma tarde infernal visitando a família Spilman para fazer perguntas chatas e superficiais.

     — Melhore essa cara — Angelina aconselhou, fazendo-o acordar do transe depressivo que entrara. — Ou os Spilman vão acabar confirmando a suspeita que todo mundo tem: você é um ser humano horrível.

     Angelina fez outra curva, dessa vez menor e mais rápida. O carro parou e Harry tirou os óculos escuros, tentando enxergar melhor o cenário à sua frente. A luz atrapalhava os sentidos sensíveis demais para alguém como ele, que gostava de ver detalhes, e o homem se sentiu completamente inútil e incapacitado quando ao menos conseguiu ler o que estava entalhado no ferro do portão à sua frente.

Quem Matou Sofia? (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora