— Gilso, eu vô te matar, peste! Cadê tu?
— Oxe. Tô em casa.
— Pois aprume que eu tô aqui, já.
— Não vai dar, Malu, mainha pediu pr'eu ficar com Jurema.
— Tu tais frescando com a minha cara, é?
— Tô não, ome. Tu malda tudo.
— E Miguelzin, cadê?
— Sei não.
— Pois saiba.
— Ah, pronto.
— Gilso, eu tô falano sério, quando eu te vir tu tais lascado, num tem Ave Maria que tu reze. — Gilson, do outro lado da linha, provavelmente podia escutar a zoada de gente e a música tocando nas caixas de som um pouco distantes, antes que a banda começasse. — A gente combinou faz dois meses isso, ome.
— Eu sei, Malu, eu juro que queria ir, ma- — Neste lado da linha, Malu sentia o cheiro do Churrasco do Gordo pingar gordura no carvão crepitando.
— Isso foi ideia tua, Gilso, tu que é assim ó, com Dominguinho de seu Manel. — Do outro lado da linha, Gilson sabia que Malu estava esfregando os dedos indicadores lado a lado.
— Tu acha que eu não preferia tá aí? Se eu soubesse de Miguelzin, eu falava com ele pra ficar com Jurema, mas mainha não pode e painho ainda não voltou de São José, tem só eu aqui. — Neste lado da linha, Malu se perguntava se havia levado dinheiro suficiente pra comprar todos os corações de galinha que estavam na grelha da barraca do Gordo naquela hora.
— As presepada que tu me faz fazer, Gilso. — Do outro lado da linha, Gilson ligava a televisão. — Quem vai ser meu par agora? Só o que me faltava eu ter que dançar com a peneira. Deixe, viu. Pois deixe.
Malu havia ido à capital retrançar o cabelo três dias antes.
— Deixe de invenção, Malu, que tu sabe que se tu estalar os dedo aparece metade de Extremoz pra dançar com tu. — Neste lado da linha, Malu batia incessantemente o pé no chão de barro vermelho entre as estradinhas de paralelepípedos da Praça da Matriz, que, há alguns dias, estava parcialmente coberta de lama por causa das chuvas dessa época do ano.
— Rai te lascar. — Do outro lado da linha, Gilson, sentado no sofá de tecido marrom, esticava os pés sujos sobre a almofada florida da cadeira de metal branco que havia puxado da mesa de jantar do lado, sabendo que Malu devia ter passado toda a ligação de braços cruzados e batendo o pé no chão. — Tu num tá mentino pra sair com macho não, né?
— Tu acha? Queria, visse.
— Olha, Gilso, se tu tiver mentino...
— Mas eu num tô, praga do cão. Tu quer que eu passe pra Jurema? — Neste lado da linha, Malu escutou Gilson chamar Jurema, a irmã mais nova, de 6 anos, que era a mãe, dona Cida, cagada e cuspida. — Cidinha, vem cá!
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Changê ⚢
Short StoryJunho de 2006. Maria Luiza, Malu, ou Nêga, filha de dona Neném e seu Lourenço, do Restaurante Benfica, e neta de dona Felicidade, a costureira ali da Rua São Jorge, é lésbica, tem 23 anos e mora em Extremoz-RN. No dia da quadrilha da festa junina...