Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT

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O Outono chegara e uma límpida manhã brilhava pelos picos elevados dos Alpes: a neve que caíra recentemente ofuscava, o ar era tão puro e tão leve que, ao respirá-lo, iríamos julgar que uma vida nova tivera início.

Nos cumes desertos do desfiladeiro do Grande São Bernardo, no convento que, à noite, serve de abrigo seguro aos viajantes, eram horas de retomar o caminho. Os monges limpavam a neve que se acumulara em frente da porta e ao longo do atalho puxavam-se as mulas para fora das estrebarias atavam-se os guizos, carregavam-nas com as bagagens; as vozes dos guias e dos cavaleiros ecoavam como se fossem música, pelo ar límpido. Alguns tinham-se já posto a caminho e, no vasto e branco planalto, minúsculos vultos de homens e de mulas avançavam, ao tilintar cristalino dos guizos e ao soar de vozes harmoniosas.

Uma nobre caravana, que fizera a excursão na véspera, pôs-se a caminho, dirigindo-se de novo para o vale, onde haviam deixado as bagagens. Envergando peles e caras fazendas, aquela família, que se compunha de dois cavalheiros idosos, de duas jovens encantadoras e de um garboso cavaleiro, era acolhida em todo o lado com a maior das deferências. Em cada etapa, um mensageiro partia à frente, a fim de se certificar se os aposentos de luxo se encontravam preparados na estalagem que os aguardava. Era o arauto do cortejo familiar. Atrás dele, vinham a grande e a pequena carruagem, ocupadas pela família Dorrit. No fim, seguia o grande carroção com a restante criadagem, as bagagens mais pesadas e toda a lama e poeira que as outras viaturas não tinham acumulado.

Todo este séquito se comprimia no pátio do hotel de Martigny, no regresso da excursão que a família fizera à montanha. Mas uma surpresa imprevista aguardava o senhor Dorrit no hotel: dois viajantes desconhecidos jantavam num dos aposentos que lhes estavam reservados!

O estalajadeiro, de chapéu na mão, especado no meio do pátio, jurava, por tudo quanto lhe era sagrado, ao mensageiro, que se sentia penalizado, aflito, desnorteado, mas que a nobre dama insistiria tanto com ele para lhe facultar o aposento por uma curta meia hora, que ele não fora capaz de resistir. A curta meia hora passara, a dama e o companheiro tinham acabado a sobremesa e a sua chávena de café, a conta estava paga, a carruagem atrelada, iam partir. Mas por um horrível acaso, que decerto se devia à maldição divina, ainda se encontravam lá.

Nada teria podido aumentar ainda mais a indignação do senhor Dorrit do que ouvir estas desculpas. Pareceu-lhe que uma mão assassina acabara de atingir a dignidade da família. Porque o sentimento desta dignidade era nele tão agudo, que estava sempre a vê-la ameaçada.

— Será possível, senhor - perguntou, rubro de cólera -, que tenha tido, hum, o arrojo de pôr um dos meus aposentos à disposição de outra pessoa?

Mil perdões! O estalajadeiro suplicava ao cavalheiro para não se zangar! Se o cavalheiro quisesse ter a suprema bondade de aguardar cinco minutos no outro salão que lhe fora reservado.

— Não, homenzinho! Nem sequer porei o pé em sua casa! Como se atreveu a agir comigo desta maneira? Por quem me toma, pois, para não me tratar, hum, para não me tratar como faz com os outros cavalheiros?

Miss Fanny interrompeu o pai com grande aspereza, declarando ser evidente que a impertinência daquele homem se devia a uma razão particular, que ele teria que confessar!

Entretanto, o estalajadeiro deslizara até ao salão em causa para lhe explicar a delicadeza da sua situação e depressa voltou a descer as escadas, precedendo a dama e o seu companheiro. Este dirigiu-se ao senhor Dorrit:

— Desculpe-me, não tenho o dom da palavra, mas aquela dama - aliás, a minha mãe manda-me dizer-lhe que espera sinceramente não ter dado azo a mal-entendidos!

O senhor Dorrit, ainda ofegante, em virtude da afronta de que fora vítima, saudou o cavalheiro e a dama com ar frio, categórico e sem apelo.

— Não, mas realmente, diga-me meu velho - prosseguiu o cavalheiro, aproximando-se de Tip.

A Pequena Dorrit (1857)Where stories live. Discover now