POV Rebeca
Depois de mais um longo e exaustivo dia na delegacia, chego ao saguão do prédio do meu tio, sentindo o peso do cansaço se acumulando sobre mim. Tudo o que quero é uma noite de silêncio, longe das pistas desconexas e das teorias que se multiplicam sem fim. Quando estou perto do elevador, o porteiro se levanta da recepção e me chama.
— Dona Rebeca, deixaram isso aqui para a senhora — ele diz, estendendo-me um envelope simples, sem nenhum detalhe que chame atenção.
— Quem deixou isso? O senhor viu quem era?
Ele faz um leve aceno, tentando se lembrar.
— Era só um menino, devia ter uns 16 anos, por aí. Ele entregou e foi embora rápido.
A sensação de inquietação começa a pulsar em mim, agradeço ao porteiro, subo para o apartamento e, assim que fecho a porta, vou direto para o sofá. Com o envelope em mãos, tento controlar a respiração antes de abri-lo. Sinto algo estranho em relação a ele, uma familiaridade difícil de definir.
Deslizo o papel para fora e, ao ver a caligrafia na carta, o impacto é imediato. As palavras parecem ter peso próprio, como se cada uma tivesse sido transmitida com uma intenção sufocante: "Onde você estava quando o mundo me esqueceu? Como teve a coragem de me abandonar e depois me esquecer?"
Meu coração acelera, e uma ansiedade súbita toma conta de mim. O texto é direto, mas também carrega uma dor, uma acusação que me desconcerta. Fico paralisado por um instante, tentando entender a origem daquele sentimento de familiaridade, da voz invisível por trás das palavras.
Passo o dedo pela tinta das palavras, quase como se pudesse tocar aquele tempo perdido, mas nada vem. Nenhuma imagem, nenhum som, nenhuma lembrança. Só a certeza de que alguém, em algum lugar, conhece detalhes da minha vida que eu nunca soube.
A frustração toma conta. Ele está me jogando em um jogo psicológico, usando minhas próprias memórias contra mim, memórias que eu não posso confirmar ou rebater. Tento me concentrar, buscar alguma lembrança, qualquer coisa que me conecte ao que está escrito, mas o esforço só aumenta o peso do silêncio.
Desvio o olhar para a janela, e uma sensação de ser observada se torna quase palpável. É como se ele estivesse ali, a poucos metros de distância, esperando para ver minha reação. O que ele quer de mim? Que tipo de satisfação ele tira ao me ver em meio a esse turbilhão de incertezas?
Tento me acalmar e decido que não vou deixar isso me consumir — mas a tensão permanece. Quem quer que esteja por trás disso sabe exatamente como mexer com as partes mais escondidas de mim, e a sensação de impotência é esmagadora. As perguntas começam a ecoar na minha mente: Por que minha vida anterior está sendo trazida à tona agora? E, principalmente, por que ele acredita que eu deveria me lembrar de algo?
O bilhete ainda está em minhas mãos, e eu o releio, tentando encontrar uma lógica, uma pista nas entrelinhas. Fecho os olhos e respiro fundo, sentindo a determinação crescer. Se ele pensa que vai me fazer recuar, está enganado. Meu tio já estava dormindo, ele havia saído mais cedo da delegacia para descansar um pouco. Eu resolvo não o acordar e contar tudo para todos juntos amanhã.
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No dia seguinte, reunimos a equipe na sala de reuniões da delegacia. A tensão é palpável, como se o ar estivesse carregado por uma tempestade iminente. No centro da mesa, o envelope, seu conteúdo provocando calafrios que percorrem minha espinha. Chico, Sunisa, Lucas e Simone observam em silêncio enquanto conto sobre o ocorrido: a caligrafia perturbadoramente familiar, as palavras que cutucaram o passado que eu nem sabia ter esquecido.

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Conexões Perigosas
Mistério / SuspenseHomicídios frequentes e de uma violência extrema assolam a cidade de São Paulo. O Departamento de Homicídios da Polícia Civil monta uma força tarefa para investigar e solucionar esses crimes, antes que uma crise seja estabelecida. A jornalista inves...