Capítulo 1 - A Pílula Azul

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Estava chovendo. Depois parou de chover e começou a ventar. Depois parou de ventar e voltou a chover. Depois o vento parou e o céu ficou limpo outra vez. Saiu um sol que durou poucos minutos. O sol desapareceu dando lugar à um vendaval muito agressivo. Depois do vendaval o céu escureceu e anoiteceu mais cedo. E, por fim, chuva outra vez. Não, não é Curitiba. É Brasília, só que, na verdade, a descrição acima é algo mais como uma metáfora já que se refere ao estado de ânimo do Congresso Nacional, da Casa Civil, da Câmara e afins, lá pelos idos de 2028. Embora, com total certeza, nos dias em que se estiver lendo este relato, o prelúdio de instabilidades que remetam a um clima de tempo sazonal já seja, em proporção menos acentuada, bem real.

João Quintanilha, um morador comum da cidade, estava chegando em casa. Ele era servidor público, concursado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Isso poderia soar como um status do qual se gabar para os demais, mas não para Josefa que, independente do que a pessoa fosse, era sempre exigente com horários, ela mesma era sempre pontual e detestava quando João se atrasava para a janta que era praticamente uma religião que ela idolatrava. Fora suas manias e a distimia contra a qual lutava, ela era a esposa perfeita. Por isso ele evitava desapontá-la, sempre chegava no horário, mas, nesse dia em especial, não chegou no horário porque batera o carro.

- Como assim bateu o carro João?

- Bati num fusca. Era um idoso desatento sabe. Agora já aconteceu.

- Você é muito desastroso viu João. Tem que ficar ligado cara.

- Foi você que encomendou alguma coisa pelo correio hoje? Quero dizer, alguma coisa diferente do que eu pedi?

- Correio? Eu não. Sabe que tenho medo de comprar pela internet.

- Bom, então deve ter vindo por engano junto com os meus livros e caiu na porta. Parece que é um álbum, em vhs, talvez seja uma relíquia.

- Ninguém usa vhs hoje mais não.

- Já pode ir lavar as mãos e venha antes que a janta esfrie. - Falou Josefa.

- Estou sem apetite.

- Como é que é?

- Estou sem apetite, Josefa.

- Não acredito no que estou ouvindo. Você vai me fazer uma desfeita depois de eu assar aquele rosbife que demorou um tempão? É sério isso?

- Não estou com fome. Me estressei muito hoje. Hoje foi punk o negócio.

- Você é muito egoísta João. Isso não se faz. Como assim não vai jantar?

- Não jantando. Não vou jantar e pronto. Me deixa ver o jornal que já vai começar. Pega uma Heineken fazendo o favor lá. - Disse ele tirando os sapatos e estendendo os pés na mesa de centro.

- Cerveja? É isso que você vai jantar então? Eu não estou acreditando nisso. Eu vou lá pra cima. Isso não é vida. Você não me ama e nunca reconhece o que eu faço. Estou muito desapontada. Já faz tempo que você está me ignorando João. Pelo menos a minha comida você estava comendo e agora nem isso mais. - Resmungou a mulher começando a chorar.

Ele acendeu um cigarro e se fez silêncio por um tempo. Ela retornou minutos depois segurando algo na mão, mas ele não a viu. Josefa desce as escadas do porão e bate a porta. Ele escuta, mas não da atenção para aquilo porque William Bonner está noticiando o vazamento de um áudio do ex-presidente Lula. "Bessias? Esse nome não me é estranho", pensa João. A porta do porão bate outra vez e Josefa sai de lá com outro objeto nas mãos. O rosto dela está lavado de lágrimas como se tivesse acabado de chegar da chuva. Ela está tremendo e segura aquele pacote de veneno para ratos ainda mais forte. A aparente solução para os problemas dela custava menos de dez reais. Custo benefício, só mesmo a mente de uma ex-economista seminarista como a de Josefina para atinar sobre tal expressão num momento crítico como aquele que estava protagonizando. Ela sussurrou:

- Vou me matar João.

Achou que ele não tivesse escutado.

- Vou me matar. - Falou mais alto e a palavras soaram menos tenebrosas como quando sussurrou. Pareceu mais normal como um inofensivo "Vou tomar uma ducha" e, talvez por interpretar como inofensivo tenha sido que ele replicou:

- Vá.

E ela foi. O jornal termina e João coloca a mão na boca horrorizado com o que ouviu e sem acreditar inconformado com a forma como o jornal tratou do assunto de forma sensacionalista pra denegrir o homem que mais de uma vez ele já ajudara a eleger. Só desligando a televisão é que, agora, ele é capaz de escutar uma canção saindo do rádio do seu estúdio no andar de cima e ecoando pelo corredor e descendo as escadas. Era sem dúvida alguma banda famosa, mas ele não estava muito bem para distinguir qual banda era, embora entendesse muito de música. Para ele, na verdade, Josefa adora fazer drama. Afinal, muitas eram as vezes em que, triste, ela subia as escadas e se trancava lá com sua garrafa de Bourbon e se punha a refletir sobre a vida bebendo de sua taça. Mas nesse dia em especial a música não parava de repetir. Acabava a última frase e voltava para o início. Foi quase uma hora até ele sair do banho e perceber que a música estava sempre repetindo. Ele passou pela porta do estúdio e bateu, mas ela não respondeu. Com certeza ela estava escutando o tal álbum em vhs que surgira na porta naquela tarde. Se fosse qualquer outra canção de suas coletâneas ele reconheceria na hora. Até que a música era boa. Ele foi até o quarto, vestiu sua roupa e apanhou seu livro para ler e seguiu sua leitura de Stephen King placidamente até notar que mais uma hora se passara e a música ainda era a mesma. Ele fecha Misery na última página e fica satisfeito consigo mesmo por ter terminado. Vai até o corredor e bate outra vez na porta até perceber que nem estava trancada. Ele entra, desliga o rádio, vê Josefa no chão, sem vida depois de ter convulsionado e vomitado sangue. Ele não acredita no que vê e se desespera. Grita o nome dela algumas vezes mas já é tarde. Ele desce as escadas, vai para o alpendre, olha para as estrelas e sente um frio na barriga e uma tontura. Então ele começa a correr. Corre, primeiro, pela rua, depois saí de sua quadra, depois ele finalmente deixa seu bairro correndo como Forrest Gump. A diferença, entretanto, é que João não usava Nike e estava de pijama. Ele cansa de correr por um tempo. Começa a transpirar e fica ofegante e resolve se sentar no banco da praça. É então que observa que correu até o centro de Brasília. Ele apoia a cabeça entre as duas mãos flexionando o corpo para frente. Ainda não acredita na merda que aconteceu. João respira fundo e levanta a cabeça e então vê um coelho branco se refestelando em um arbusto que está alguns metros a frente dele. O coelho sai na direção da calçada e então João o vê melhor. É um belo coelho. O bicho faz menção de correr para o meio da rua e João teme que ele se acidente e corre atrás do animal. Os dois atravessam a rua e então o coelho continua correndo em cima da calçada e corre cada vez mais rápido até avistar outro arbusto e entrar nele e desaparecer. João fica intrigado e resolve sentar-se na base de uma árvore que está no canto de outra praça. Ele se agacha e começa a pensar na noite triste que passou e em como sua vida será um tormento dali em diante e então começa a chorar e chora até pegar no sono.

Brasília SitiadaWhere stories live. Discover now