Prelúdio

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 Ícaro sempre soubera que o amor seria a causa de sua morte.
 Era isso que seu pai sempre dizia. Mesmo que os dois estivessem sempre presos dentro de um labirinto, como criminosos perigosos ou pior, como monstros, monstros como o que aquele lugar fora construído para aprisionar. Mas agora tudo havia mudado, o Minotauro estava morto, e Ícaro e Dédalo, aprisionados por tempo indeterminado, provavelmente até o dia em que morressem. Mesmo assim, mesmo que não houvesse perspectiva além daquilo. Ícaro jamais carregara qualquer tipo de rancor sobre as pessoas que os aprisionaram, era de sua natureza sempre esperar o melhor dos outros, e segundo seu pai, esse seria seu fim.
 Fadado a estar aprisionado no labirinto por causa dos erros de seu pai, e até dele, não poderia ser considerado completamente inocente já que Ícaro também havia colaborado na construção do lugar, pessoas fazem escolhas, e tem que arcar com as consequências de seus atos. Mesmo assim, achava que manter alguém isolado por tanto tempo sem a menor visão de fuga, era um castigo cruel demais para qualquer um.
 Seus dias se resumiam a passear pelos corredores já vazios depois da morte do Minotauro, por Teseu. Depois de um tempo todos aqueles caminhos se tornaram tão familiares para Ícaro que ele julgava que conseguiria encontrar a saída até mesmo de olhos fechados.
 A ausência de teto no labirinto também permitia a Ícaro que tomasse longos banhos de sol, gostava de sentir o calor em sua pele, gostava de analisar como aquilo tornava sua pele oliva ainda mais bronzeada, deixava que os cabelos castanhos já longos o bastante para ultrapassar seus ombros caírem por suas costas quanto se deitava, muitas vezes adormecia ali mesmo, o sol e sua luz imponente haviam se tornado um de seus melhores amigos, e uma das únicas coisas que o ajudava a manter-se são, em momentos tão desesperadores.
 É inexplicável a sensação de estar cativo em uma prisão sem teto, ao mesmo tempo que sente e praticamente vê sua liberdade, sabe que não pode tê-la, e essa é uma verdade mais do que excruciante, que Ícaro se via obrigado a lutar contra todos os dias, dizia a si mesmo que um dia conseguiria sair, que havia esperança, mas ele mesmo já não sabia no que exatamente deveria acreditar.
 Durante os longos dias que passava no labirinto, um dos únicos consolos era acordar com a luz suave e gentil do sol que o banhava. Mesmo que a luz acabasse por despertá-lo em algumas ocasiões, aquilo não o irritava, sentia que o sol era nada menos do que seu único amigo, via conforto nele.
 Ouvia de seu pai histórias sobre os deuses, ficava sempre maravilhado ao ouvir histórias sobre o poder do grande Zeus, Poseidon que governava os mares, imaginar-se tendo poder sobre tanto deixava Ícaro admirado! Mas com certeza, o que mais lhe chamava atenção era Apolo.
 Era natural que visse conforto em Apolo, a ligação que tinha com o sol, era mais forte do que ele poderia explicar, era a única coisa que tinha. E pensar que o sol que o agraciava todas manhãs tinha um nome, fazia com que uma chama se acendesse e aquecesse o peito de Ícaro. Em diversas ocasiões se pegou tentando imaginar como tal deus seria. Os mitos diziam que era um dos mais belos deuses do Olimpo, também falava-se muito sobre sua bondade. E em diversas ocasiões ele se pegou rezando para o deus, pedindo que o tirasse dali, que o libertasse, ao mesmo tempo que repetia a si mesmo que estava sendo ganancioso, não deveria ocupar os deuses com suas preces infundadas.
 Mesmo pensando assim, não tinha a capacidade de se segurar. Fazia suas preces sempre quando o sol nascia, era o momento em que Apolo estaria levando sua carruagem. Deixava que a luz delicada banhasse seu corpo, e conversava com ela. Não tinha o que oferecer em sacrifício, naquela torre, então podia apenas esperar que o deus se apiedasse dele. Ouvira várias histórias sobre a bondade de Apolo, e aquilo só fazia com que admirasse ainda mais o deus. Em momentos, refletia sobre como deveria ser complicado ser um deus, tantas atribuições, tantas ocupações, e também tantos inimigos.
 - Grande Apolo, ouça minhas preces... - Sempre começava assim, deixando claro a apreciação e respeito que tinha pelo deus. - Eu quero ser livre, como você, quero poder voar pelos céus. Sei que não estou em posição de pedir tanto, e também não tenho meios de honrá-lo, mas se achar justo, peço a tua ajuda.
 Depois de rezar, sempre ficava um tempo ali, sentindo o calor doce da luz do sol, por vezes fechava os olhos e esperava, talvez por uma resposta, não sabia se era ganância demais de sua parte, mas estaria preso ali sua vida toda de qualquer modo, então por que não permitir-se sonhar, pelo menos ter alguma esperança, mesmo que infundada? Não poderia-se dizer que Ícaro estava confiante, no fundo sabia que os deuses atendiam apenas aos nobres, que organizavam grandes banquetes e festas, com sacrifícios inimagináveis, quem ele era em comparação a isso? Um prisioneiro qualquer, um pecador.
 Esteve tão absorto em seus próprios pensamentos, que levou alguns segundos para perceber a voz que o respondia, de início, imaginou que fosse apenas seu cérebro lhe pregando uma peça, um sinal de que estava há tanto tempo sem interação humana, que aquilo mexia com ele. Apenas da segunda vez, Ícaro conseguiu compreender o que a voz misteriosa dizia. E sua primeira reação foi pensar em como aquela voz preenchia as paredes daquele labirinto, exalava um tipo de força como o garoto nunca havia sentido antes, o que só intensificou seu medo de que pudesse estar delirando.
 - Ícaro... - A voz que chamava seu nome era gentil, por um instante suspeitou que fosse seu pai, mas era diferente, tinha um certo calor, como a brisa do verão. - Ouvi teu chamado, e decidi te fazer companhia.
 - Quem és? - Ícaro deixou escapar certo medo na fala, não suspeitava que tal voz pudesse lhe fazer mal, era mais um tipo de receio, respeito. Tinha uma suspeita de quem poderia ser a pessoa que falava, mas precisava confirmar.
 - Achei que isso já estivesse claro, mas então devo me apresentar, me chamo Apolo. - Apolo faz uma pausa quando diz isso, esperando que Ícaro digerisse a informação, depois volta a falar. - Não é de meu feitio ignorar pedidos de alguém em uma situação como a sua, preso e isolado por um crime que não cometestes, não posso libertá-lo, mas se desejares, ficarei aqui e lhe ajudarei a suportar esses dias solitários, é o mínimo que posso fazer.
 Aquilo fez com que Ícaro ficasse confuso por alguns minutos, ele não sabia exatamente como reagir. É claro que estava feliz e se sentindo lisonjeado, sabia que ter um deus atendendo suas preces não era algo de que muitas pessoas pudessem se orgulhar, mas agora que estava acontecendo com ele, simplesmente não sabia como reagir.
 Deveria agradecer? Deveria alimentar esperanças? Sabia que os deuses com frequência brincavam com o destino dos humanos, muitas vezes de modo cruel. Mas também sabia que Apolo era um dos únicos deuses que não tinha tal fama, então decidiu ir pelo caminho mais seguro, e criar primeiro uma conversa adequada.
 - Senhor Apolo, não posso oferecer-lhe grandes sacrifícios, ou recompensá-lo de qualquer modo, o que posso fazer?
 - Não me chamar de senhor Apolo seria um bom começo. - Apolo ri ao dizer isso, o que faz com Ícaro estremeça, Apolo simbolizava tudo que era contrário ao que ele tinha no labirinto, ele era o calor, o aconchego, algo pelo que ele esperava há muito tempo, e principalmente, ele era o símbolo da liberdade, era tudo o que desejava naquele momento. - A primeira coisa que tem que entender já que vamos conviver agora, nós, deuses todo-poderosos não somos tão diferentes de vocês, humanos, por isso, não há motivos para que me trate como alguém superior, talvez outros se importariam, mas eu acho isso contraproducente, é bem contraditório querer estabelecer uma relação com um humano, se você agir como superior o tempo todo, não acha? Se torna mais uma relação de poder, em que um é o mestre e outro o servo, do que algo mútuo, e eu não gosto disso.
 - Então, Apolo... - Ícaro corrige o que havia dito antes, e dessa vez se permite a sorrir, o deus era tão diferente do que ele imaginara que o deixava feliz, era muita informação para um dia só, mas teria que encontrar uma forma de processar e aceitar tal fato.. - Como posso fazer valer sua presença? Sou apenas um prisioneiro, estou fadado a continuar aqui até minha iminente morte, o que poderia interessar tanto um deus em uma rotina tão monótona?
 - Você, Ícaro, você me atraiu até aqui. - Ícaro sentiu seu corpo estremecer da mesma forma que antes ao ouvir isso. - Seus modos gentis, sua inocência, tudo o que te torna você mesmo me trouxe até aqui, achei que não seria um desperdício de tempo se tentasse falar com você, e me provei certo, é com certeza alguém único nesses tempos, não posso dizer que encontrei muitos homens ou mulheres que tem uma alma tão gentil quanto a sua, estarei aqui para ouvir suas reclamações, suas preces, e farei o possível para tornar seu tempo nessa terra o menos solitário possível, se aceitar.
 Ícaro teve que parar por um momento, eram tantas revelações que começara a ficar confuso. Um deus falava com ele, um deus estava pedindo sua permissão para conversar com ele, como um igual. Era algo tão incrível que sentiu seu corpo estremecer, aquilo se tornava cada vez mais comum e o assustava de certo modo. Por alguns segundos, realmente considerou que aquilo tudo fosse apenas uma brincadeira cruel, mas no fundo, Ícaro sentia a gentileza de Apolo naquelas palavras, a sinceridade, e não pôde deixar de responder:
 - Se achar que sou digno de seu tempo, Apolo, ficarei honrado em aceitar. - Permitiu-se sorrir novamente, e pôde jurar que sua mente projetou de algum modo, que Apolo estaria sorrindo de volta para ele, mesmo sem poder vê-lo, pôde jurar que sentiu sua presença se tornar mais forte, mais quente.
 - Não tenho permissão para estar aqui e muito menos para mostrar-lhe meu rosto, então será nosso segredo, consegue garantir-me isso?
 - Pensei que deuses não tivessem limitações... Não estou julgando-o, é claro! Desculpe se soou como isso. - Ícaro tentou corrigir sua fala o mais rápido que pôde, mas tinha medo do estrago já ter sido feito e de acabar estragando sua relação com o deus daquele modo, Apolo deve ter percebido seu medo, pois voltou a rir, não zombava dele, era como se estivesse se divertindo com o jeito um pouco desastrado do garoto, mas gostasse disso.
 - Vamos dizer só que eu fiz algumas coisas que desagradaram os outros deuses, e agora estou sendo vigiado, não faria sentido envolvê-lo em uma guerra que não é sua.
 - Se mete sempre em confusão por ser tão gentil? Talvez nós realmente não sejamos tão diferentes assim... - Ícaro solta um suspiro profundo, sua natureza bondosa não o permitia reclamar com frequência, mas se encontrava exausto.
 - Me conte mais sobre isso, estou aqui para ouví-lo. - Ícaro sentiu um pouco de tristeza nas palavras do deus, como se Apolo sentisse algum tipo de simpatia por sua situação, não sabia dizer se aquilo o reconfortava ou o deixava ainda mais frustrado, não queria reclamar de sua vida, não queria ser ingrato por estar vivo, mas estava exausto.
 - Só queria entender se existe algum motivo para tudo isso o que acontece, sei que não posso culpar o destino ou os deuses, seria injusto, meu pai fez suas escolhas e isso nos trouxe até aqui, mas isso não me tranquiliza tanto, muitas vezes me pego imaginando como seria uma vida fora dessas paredes, ou até mesmo considerando... É melhor não tocar nesse assunto.
 O silêncio que se seguiu pareceu durar horas, mas Ícaro pôde deduzir que Apolo estava escolhendo as palavras com cuidado, já começara a ver o deus como um igual, e não tanto quanto um ser divino, e ter alguém ali já era o bastante para tornar seu fardo mais leve. Tudo o que sempre pedira aos deuses era qualquer tipo de companhia, algo que ajudasse sua mente já debilitada a não enlouquecer completamente, e era isso que tinha naquele momento, não encontrava palavras para descrever o alívio absurdo que sentia tomar seu peito.
 - Não direi que tenho algum poder sobre o destino, não sou eu quem dá as cartas, sou apenas o patrono das profecias. - Apolo faz uma pausa, parecia falar com cautela, como se cada palavra fosse perigosa e não pudesse ser dita sem ser considerada muito bem antes. - Mas posso garantir que algum dia você encontrará um modo de sair desse lugar, e quando sair, irei encontrá-lo, é uma promessa.
 - Se for assim, acredito que consiga suportar mais um pouco, apenas por você, Apolo. - Ícaro volta a sorrir, e ele sente a presença do deus agitar-se novamente, tentou em vão, decifrar o que aquela mudança no humor do deus significava, mas não ficara tão claro para ele.
 - Lembre-se que não poderei estar aqui em todos os momentos, pois devo cumprir minhas obrigações, mas tentarei responder aos seus chamados o mais rápido possível.
 Não ousou mencionar a visita de Apolo a seu pai, tinha medo da reação do homem, principalmente medo de que talvez o julgasse louco, não contava com o fato de que seu pai era um observador muito bom, e na hora do jantar, acabou percebendo uma diferença no humor do garoto.
 - Ícaro, aconteceu algo para deixá-lo tão animado? - As palavras do pai contrastavam as de Apolo, enquanto o deus soava gentil, quente. O pai, como sempre, soava frio, e impunha respeito até mesmo em uma conversa tão corriqueira como aquela.
 - Não, pai, acho que tive um sonho bom e ainda estou de certa forma, perdido nele. - Se arrependeu de ter dito aquilo, sabia como seu pai não considerava como algo produtivo o modo como Ícaro via o mundo, sempre imaginando, nunca focando no que para Dédalo era realmente importante.
 - Não temos tempo para sonhos, trate de ocupar seu tempo em encontrar um modo para nossa fuga, estou trabalhando nisso, mas talvez se você também usar sua mente para algo realmente relevante, o processo seja mais rápido, entendeu? 
 - Sim, pai. - Ao responder isso, a única coisa em que conseguiu pensar foi Apolo, sentiu vontade de chorar pensando em como tudo o que encontrava para tentar se distrair daquela realidade era completamente rejeitado por seu pai, mas se controlou, era melhor do que criar mais uma briga com Dédalo, deixou que sua mente focasse em outras coisas, pensou em Apolo, e de algum modo, isso o acalmou.
 O deus ia visitá-lo diversas vezes, esporadicamente. Por vezes, ele vinha ao nascer do sol, sua presença exalando um calor terno, que era praticamente capaz de atingir a alma do garoto, pelos menos era essa sensação. Em outras ocasiões, o deus aproveitava o céu noturno para visitá-lo, alegando que isso diminuiria as chances de que os dois fossem descobertos, já que a deusa da lua, irmã de Apolo, não se importava tanto com o que o irmão fizesse ou deixasse de fazer. Apolo gostava de falar sobre Ártemis, depois de um tempo Ícaro acabou perdendo a conta de quantas vezes o deus chegava com algum assunto novo sobre alguma peça que pregou na irmã, ou algum feito radical de Ártemis, sabia que ela não gostava muito de homens, e ao ouvir as histórias de Apolo, acabou desenvolvendo um tipo de receio, então passou a aumentar suas preces noturnas.
 Em uma das noites, Apolo acabou percebendo, e passou então a zombar de Ícaro, claro que de modo totalmente amigável.
 - Não pode estar falando sério, tem medo da minha irmã? - Novamente, Ícaro conseguiu imaginar exatamente o tipo de sorriso zombeteiro que o deus deveria portar naquele momento.   - Acho que ter receio dos deuses é algo completamente normal, ainda mais quando falamos de uma deusa como a grande Ártemis! Ela me transformaria em um cervo sem pensar duas vezes, tenho certeza.
 - Você teria que ofendê-la de modo realmente sério para isso, como aqueles homens que ousam tentar vigiar as caçadoras de minha irmã em momentos íntimos, isso é um pecado condizente com tal punição.
 - Mas, como eu saberia exatamente o que pode ou não acarretar em tal punição? - Ícaro soava quase como uma criança inocente, imaginou que Apolo estivesse se divertindo ao máximo, então não esperou que o deus mudasse o tom da conversa.
 - Não tem muita experiência com mulheres, não é? - Dessa vez, Apolo não soava como se estivesse brincando com ele, como antes, sua curiosidade parecia sincera.
 - Não tive a oportunidade, todo o tempo que passei nesse labirinto... - Aquele pensamento jamais o ocorrera, estava tão acostumado a ficar sempre sozinho, que nunca havia considerado tal coisa. - Mas também, não entendo tanto o atrativo que homens enxergam tanto nas mulheres.
 - Então vamos supor, se tivesse que escolher entre mim ou minha irmã, preferiria ter a chance de me encontrar, ou de estar na presença de Ártemis? Não, vamos jogar um pouco mais sujo, encontrar-se com Apolo, ou Afrodite? Deve ser uma grande tentação, ela é a deusa da beleza, afinal, você provavelmente enxergaria nela a beleza feminina que considera mais majestosa, não sente-se tentado?
 Precisou pensar por um bom tempo antes de responder aquelas perguntas, Ícaro só nunca havia pensado nisso, mas realmente. Seu interesse por mulheres parecia praticamente inexistente. Mas apenas a perspectiva de talvez se encontrar com Apolo fez seu coração acelerar e suas bochechas avermelharem. Só de imaginar um cenário em que finalmente se encontraria com o dono daquela voz que animava seus dias, o enchia de alegria.
 - Acredito que o escolheria, Apolo. - Sentiu a presença de Apolo se agitar novamente e em seguida, o silêncio, chegou a pensar que o deus talvez tivesse simplesmente ido embora, talvez afugentado pela ousadia de Ícaro, mas logo veio a resposta. Clara, magnífica e sincera, mais do que ele poderia ter desejado até mesmo em seus mais profundos sonhos.
 - Eu também o escolheria, acima de tudo.

O Lamento de ÍcaroWhere stories live. Discover now