Angústia

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 Os momentos que passava com Apolo eram os melhores dos dias de Ícaro.
 Os dois conversavam sobre tudo. Apolo abrira seu coração para o garoto de maneiras que nem suspeitava que fossem possíveis, quando estava com ele, não sentia vergonha de nada, não tinha motivos para hesitar, e Ícaro fazia o mesmo.
 Entre as conversas, os dois faziam várias promessas sobre o que gostariam de fazer depois que conseguissem encontrar algum modo de tirar Ícaro daquela situação, não era uma questão de "se", e sim, quando. O deus se recusava a ser pessimista, é claro que não poderia interferir diretamente, mas rezava em silêncio todos os dias para que as circunstâncias corressem a favor do garoto.
 Dédalo se mostrava cada vez mais ansioso com o plano de fuga, e parecia estar chegando a algum lugar, havia começado a se isolar cada vez mais na oficina, o que fez com que Ícaro ficasse mais tempo sozinho, sentiu falta de poder conversar com Apolo durante o dia, mas sabia que tudo o que poderia fazer era esperar pela noite.
 Quando o deus chegava, eles conversavam por várias horas, aquelas visitas haviam se tornado um dos únicos momentos em que Apolo sentia que poderia ser totalmente ele mesmo, mostrar que por trás de toda aquela pose de deus, havia também um homem, um homem que sabia amar, e se machucava no caminho. 
 Naquela noite em especial, Ícaro parecia um pouco para baixo. Assim que se dirigiu ao labirinto e ao quarto do garoto, Apolo o viu sentado, encarando o chão. Os cabelos cobriam seu rosto de um modo adorável, em outra ocasião, o deus poderia ficar horas apenas o observando, mas não poderia ignorar o fato de que o amante estava estranho, Ícaro nunca ficava tão desanimado, sempre o esperava com um sorriso no rosto.
 - O que houve, Ícaro? Não me parece bem. - Apolo soava genuinamente preocupado, o que fez com que Ícaro se sentisse até mesmo um pouco culpado por aquilo, não era sua intenção preocupar o deus, ou fazer com que sentisse por ele.
 - Meu pai pode ter encontrado alguma maneira de sair desse labirinto... - Foi tudo o que Ícaro conseguiu responder, aquilo soou estranho aos ouvidos do deus, deveria estar feliz por finalmente poder sair daquele lugar!
 - E o que tem de errado nisso? Achei que ficaria feliz com uma notícia assim, afinal, me chamou pedindo para que o libertasse, inclusive.
 - É que. - Ícaro hesitou ao falar, sabia que teria que ser cuidadoso com aquele assunto. - Se sairmos daqui, terei de parar de vê-lo, não é? Você só me visita por estarmos em um lugar isolado e longe do alcance dos outros deuses, se eu sair daqui...
 - Não consigo acreditar que está ocupando seus pensamentos, Ícaro! - Apolo tentou não se sentir ofendido por aquilo, não fazia sentido para que ele Ícaro pensasse assim. - Eu faria qualquer coisa por você, e quando sair daqui, eu irei oficializar nosso relacionamento, não irei mais escondê-lo dos deuses, é uma promessa.
 - Eu não queria duvidar de ti, só me senti inseguro. - O garoto abraça os joelhos, ainda de cabeça baixa, estava envergonhado, a última coisa que queria era perturbar Apolo, tinha medo de que ele o deixasse, ele era apenas um mortal, e seu amado, um deus, era impossível não sentir algum tipo de insegurança. - Eu sinto muito...
 - Ei, não estou irritado com você, só me surpreendeu ver que tem esse tipo de inseguranças, vamos, levante a cabeça. - Quando Ícaro o ouve e levanta o rosto, Apolo sorri, mesmo que Ícaro não possa vê-lo, alguns fios de cabelo teimosos caíam sobre o rosto do menino, e o deus teve que segurar para não aparecer naquele momento mesmo e afastá-los, queria tanto tocá-lo, que praticamente doía fisicamente. - Eu o amo, quando sair desse lugar, isso não irá mudar, irá melhorar, na verdade! Tem tantas coisas que podemos fazer juntos.
 - Que tipo de coisas? - Isso faz com que um pequeno sorriso se forme nos lábios de Ícaro, o que deixa Apolo um pouco mais animado, era isso o que ele queria, poder ver sempre aquele sorriso, não suportaria vê-lo triste novamente.
 - Podemos ir aos festivais, visitar as feiras das cidades, se eu estiver disfarçado, não me reconhecerão como Apolo, é fácil se misturar, você iria adorar toda aquela dança, a música, é sempre tão divertido e tem tantos jogos, tantos quanto você jamais poderia imaginar, quero apresentar esse mundo a você, se me permitir.
 - Eu iria a qualquer lugar por você, meu sol. - Sempre que Ícaro o chamava daquilo, Apolo sentia seu peito quase explodir de alegria e do carinho que sentia por aquele garoto, ansiava por um dia em que pudesse finalmente se encontrar com ele e ouvir daqueles lábios em pessoa, mas por ora, teria de esperar. 
 As semanas passaram mais rápido do que geralmente faziam na primavera, poderia ser apenas coincidência, ou também pelo simples motivo de que os dias dos dois agora se resumia a esperar pela noite, conversar por várias horas sobre assuntos diversos, e assim o ciclo recomeçava.
 Em um dos dias que precedia o início do verão, quando o ar gelado da primavera calmamente tornava-se morno, Dédalo entrou no quarto do filho, parecia mais agitado do que o normal e não demorou mais do que alguns segundos para que Ícaro pudesse deduzir o motivo.
 - Logo poderemos sair daqui, eu finalmente encontrei uma maneira, Ícaro! - Há algumas semanas atrás, aquilo teria deixado Ícaro até um pouco triste, mas agora que estava mais seguro sobre seu relacionamento com o deus, estava ainda mais ansioso para deixar a prisão, então sorriu e foi ao encontro do pai.
 - Quando poderemos fazer isso?
 - Estou construindo asas, asas que nos tirarão desse lugar, e nos deixarão voar pelos céus, precisarei advertí-lo sobre algumas coisas, mas por enquanto, deve apenas aguardar enquanto planejo nossa rota de fuga, nunca estivemos tão perto, finalmente seremos livres, acho que enlouqueceria de vez se tivesse que passar mais tempo nesse lugar.
 - Obrigado por tudo, pai. - Ícaro sorri para ele, pensou em contar a notícia para Apolo naquela noite, mas queria manter tudo em segredo, como uma surpresa para o deus, sabia que isso o deixaria ainda mais feliz, sabia que seu amado gostava desse tipo de brincadeira.
 Por isso, naquela noite, não falou nada além do normal. Conversavam sobre os assuntos de sempre, Apolo contava a Ícaro sobre o que acontecia no mundo normal, sobre as tragédias quase diárias que ocorriam com os amantes mortais, o garoto gostava de ouvir sobre coisas ruins que acometiam os apaixonados, sentia que isso poderia tornar um relacionamento ainda mais forte quando se superasse o fato.
 Depois de um bom tempo de conversa, Apolo passou a cantar, entoando hinos para os deuses. Não havia nada mais que importasse naquele mundo para Ícaro naquele momento, a voz de Apolo que chegava ao seus ouvidos era mais doce do que qualquer outra coisa que ele já havia tido o prazer de escutar em sua vida. Fechou os olhos para apreciar melhor a música, deixando que a magia daquele momento penetrasse seu corpo e alma, e acabou deixando escapar, em um sussurro:
 - Eu o amo tanto... - Esperou que Apolo terminasse de cantar, para continuar a falar, agora para que o deus o escutasse. - Me sinto como a pessoa mais abençoada deste mundo por tê-lo a meu lado, Apolo.
 - O que houve? Soa mais melancólico do que o normal hoje. - Apolo disse em tom de brincadeira, o que fez com que Ícaro se permitisse a rir baixinho, queria contar as boas novas para o deus, mas sabia que isso acabaria com a graça da surpresa, então se segurou.
 - Eu só tomei um tempo para refletir sobre como amo meu sol.
 E a noite continuou como qualquer outra, sem que os dois sequer desconfiassem que seria a última que passariam juntos. Sem que houvesse qualquer aviso fúnebre ou premonição, mesmo para o deus das profecias, dessa vez, as deusas do destino não estavam a seu favor, talvez nunca estivessem.
 Assim que amanheceu, Ícaro foi acordado pelo chamado de seu pai, demorou para que entendesse o que Dédalo dizia. Bocejou e se sentou, sentindo o calor doce do sol, pensou em Apolo e sorriu, deixando que os raios suaves tocassem seu corpo, era como sentir o deus o tocando. Foi acordado desses devaneios quando o pai entrou no quarto, agitado, parecia agitado.
 - Eu consegui, nós vamos embora hoje.
 - De verdade? - Ouvir aquelas palavras fez com que Ícaro se levantasse quase que com um salto, não queria mais esperar, queria sair naquele exato momento. - E como?
 Dédalo não responde, apenas sai do quarto, acenando para que Ícaro o siga. Quando chegam à oficina, o garoto solta um suspiro surpreso, asas gigantescas deitavam sobre a mesa, eram magníficas, se aproximou e as tocou delicadamente. Eram feitas de penas de pássaros, e outros materiais que Ícaro não pôde identificar no momento, foi quando seu pai decidiu falar:
 - A base delas foi feita com cera, então tem que tomar muito cuidado, não pode voar próximo ao sol, ou a cera pode derreter, está proibido de voar próximo ao mar, também, ou a brisa das ondas pode umedecer as asas, dos dois modos, irá cair, e tudo será perdido, entendeu?
 - Sim. - Por algum motivo, Ícaro não achou aquelas informações tão importantes naquele momento, tudo o que queria era sair daquele lugar e se encontrar com Apolo, tentou pensar em um lugar perfeito para encontrar o deus, teria mais tempo para decidir, então afastou esse pensamento e focou na fuga.
 Se encontrou com o pai depois de algumas horas na mesa sala, sendo o labirinto uma prisão sem teto, seria fácil fugir por qualquer um daqueles cômodos dali. A cada segundo que passou com Dédalo arrumando as asas em suas costas, Ícaro sentia o nervosismo tomando seus membros, sentiu suas pernas começando a tremer, mas apertou as mãos em punho e se controlou.
 - Então, vamos. - Dédalo diz, apertando de leve o ombro do garoto para tranquilizá-lo, e então pega velocidade, começando a flutuar. Ícaro tem que respirar fundo algumas vezes para reunir coragem, mas faz o mesmo e vai atrás do pai.
 A sensação de estar voando era mais assustadora do que ele imaginara, mas ao sentir o vento em seu rosto, sentiu também sua liberdade, pediu tanto por isso e por tanto tempo, que finalmente tê-la era emocionante. Tudo o que conseguia ver no horizonte era o mar, teriam que voar muito tempo até chegar até alguma cidade, Ícaro tentou seguir seu pai, mas tudo o impressionava tanto.
 Viu pássaros voando livremente no céu, contemplando as ondas, sentia-se embriagado com cada detalhe daquele lugar, foi quando o notou. Logo acima de sua cabeça, ele olhou para o sol. No momento em que o notou, pensou em Apolo. De perto, aquele calor era ainda mais majestoso. Não pôde deixar de se sentir tentado a se aproximar.
 É claro que lembrava do aviso de seu pai, mas parecia que nada mais importava naquele momento, pois ao ver a luz cada vez mais próxima de si, mais ele tinha esperança de ver Apolo, o seu sol. A cada metro de distância encurtada entre Ícaro e o astro tão brilhante, era como se pudesse enxergar seu deus, como se pudesse praticamente tocá-lo.
 Entrou em um estado de transe tão grande que não pôde perceber a cera que derretia em suas asas. Só percebeu o que havia acontecido quando estava caindo, estendeu suas mãos uma última vez para os céus, gritou o nome de seu amado uma última vez, e então, caiu de encontro ao mar, aceitando aquela escuridão o envolvesse.
 A última coisa que passou por sua mente antes de morrer foi Apolo, fez uma prece silenciosa para se desculpar, não poderia cumprir a promessa de se encontrar com o deus, não poderiam ir até as feiras, os festivais, jamais poderia vê-lo, e foi isso o que mais doeu, não temia a morte, mas ser privado da única coisa que se ama no mundo, seria mais doloroso.

 Quando Apolo ficou sabendo do acontecido, já era tarde demais. Quando as preces de Ícaro o atingiram, o corpo do garoto já havia sido levado pelas ondas, engolido pela escuridão daquele mar tão vasto, sobrevoou a área onde a queda havia acontecido em choque, momentos depois, o choque se transformou em tristeza, e o deus não pôde se conter, desabou em lágrimas, deixando que toda aquela dor se misturasse à água salgada do oceano.
 E doía, doía mais do que qualquer outra coisa que ele já havia sentido. A última vez em que Apolo havia sentido tanta dor, fora na morte de Jacinto, mas mesmo com Jacinto, havia um corpo, ele pôde, no fim, manter seu amor com ele de outra forma, como uma flor, mas sua memória ainda era preservada, mas e com Ícaro? Sabia que não conseguiria recuperar o corpo do garoto, os mares não eram seu domínio, e ele não ousaria meter-se com eles. Mas se não conseguisse resgatá-lo, nem ao menos poderia enterrá-lo dignamente, e isso significava que a alma de Ícaro vagaria pela eternidade, sem ter direito ao descanso eterno dos Campos Elíseos, e era tudo sua culpa.
 Se apaixonar por deus havia levando Ícaro a cometer um erro tão grande, e mesmo sendo um deus, uma criatura presumidamente poderosa, não pôde protegê-lo, nunca conseguia proteger ninguém, e isso o frustrava muito. Fora a mesma coisa com Jacinto, Dafne, e todos os outros que vieram antes, tinha certeza de que dali para frente, isso continuaria a se repetir, era como Ártemis havia dito. Os mortais tem uma vida curta, se apegar a eles só trás dor, mas que outra alternativa ele teria? Ao contrário de sua irmã, que não se apegava nem tinha a vontade de fazer isso, como um perfeito oposto, Apolo amava com uma facilidade extrema.
 Permitiu-se chorar até que não conseguisse mais derramar lágrimas, no futuro, existiriam relatos de como até mesmo os deuses nas profundezas dos mares puderam ouvir Aquiles, quando este chorou a morte de Pátroclo, o mortal que difundiu esse fato claramente não presenciara o estado em que o deus se encontrava. Encontrou-se mentalmente exausto, o que o surpreendeu, não sabia que isso era possível com um deus, mas sabia onde deveria ir e o que deveria fazer assim que saísse daquele lugar, só tinha um destino.
 Não precisaria lidar com o luto, se não houvesse uma razão para tal sentimento existir.
 Um deus comum precisaria mandar um aviso com muitos meses de antecedência para Hades, de modo a ser aceito para uma simples visita no mundo anterior. Apolo, por sorte, fazia parte da lista seleta de deuses por quem Hades sentia apreço, e por isso, conseguiu passar pelos portões e por Cérbero, o cão de três cabeças guardião sem problemas.
 Viu a expressão surpresa de Hades quando entrou no salão real, onde o deus passava a maior parte de seus tempos, resolvendo problemas relacionados à chegada de novos mortos, Apolo sabia que Hades detestava aquela burocracia toda e tentava a todo custo diminuir o número que mortos que eram direcionados à seu submundo, mas não era uma tarefa fácil. Durante o inverno, Perséfone estava lá para distrair o deus, mas durante a primavera e o verão, ela passava seus dias com sua mãe, Deméter.
 - Apolo. - O tom de voz que Hades assumiu demonstrava seu assombro, mas também exalava gentileza e preocupação, não era segredo o carinho que ele sentia pelo deus mais novo, um dos talentos de Apolo era cativar a todos que cruzassem seu caminho. - Você parece abalado, o que faz aqui?
 - Eu preciso de um favor. - Apolo sentia as palavras escapando de sua boca quase que em modo automático, não tinha forças para pensar ou elaborar um pedido adequado, sabia que quando se pedia favor a outros deuses, existia um protocolo a seguir, mas nada mais disso importava naquele momento, se Hades desejasse matá-lo, ele não se importaria, tamanha era a dor que sentia. - Preciso levar uma pessoa de volta.
 - Sabe que me pedes algo impossível. - A voz de Hades era calma, entendia o estado em que o sobrinho se encontrava, e não estava ali para julgá-lo por seus sentimentos, mas não havia nada o que pudesse fazer, as consequências de alterar o destino de um mortal eram severas. 
 - Serei leal ao senhor por toda a eternidade, tio, eu só... - Sentiu suas pernas vacilaram e desabou, de joelhos no chão, ouviu exclamações chocadas dos servos de Hades que observavam, ver um deus como Apolo em uma situação tão vulnerável era algo realmente chocante. - Não é justo, ele não merecia morrer daquele modo.
 - Apolo, você sabe mais do que ninguém, como deus das artes medicinais que eu não posso fazer algo desse tipo. - Hades esperou por alguns segundos, quando Apolo não respondeu, continuou a falar. - É de família querer desafiar a morte? Deve se lembrar do exemplo que seu filho Orfeu nos deixou, foi um erro tê-lo permitido até mesmo tentar tirar sua mulher do submundo, e como ele nos provou, é impossível, mesmo que eu permita, não se pode perturbar a ordem natural dos acontecimentos, está acima de nós.
 - Somos deuses, podemos alterar a ordem natural natural das coisas, lógica não importa em nosso caso, nós podemos... - Se calou, mesmo que doesse admitir, Apolo sabia que seu tio estava certo, ele mesmo não sabia exatamente no que estava pensando quando decidiu se prostrar perante Hades e fazer um pedido infundado como esse, mas estava desesperado. - Eu não pude protegê-lo, nunca pude tocá-lo, Ícaro morreu me conhecendo apenas como o deus Apolo, só queria ter estado com ele pelo menos uma vez, e ele nem pôde ser enterrado devidamente, vai vagar eternamente como uma alma perdida!
 Abaixou a cabeça e voltou a chorar, dessa vez silenciosamente. Hades ficou em silêncio por alguns segundos, mas para a surpresa de todos se levantou e se aproximou de Apolo, os ombros do deus mais novo tremiam, lágrimas caindo de seus olhos e banhando o chão lentamente. Era mais do que o rei do submundo conseguia suportar, Apolo sempre fora um de seus sobrinhos favoritos, quando a maioria dos deuses do Olimpo viraram suas costas em repulsa ao trabalho que acontecia no submundo, seu sobrinho parecia entendê-lo mais do que qualquer outro. Se ajoelhou e tocou um dos ombros do deus que chorava com ternura, o que fez com que este levantasse a cabeça, para prestar atenção, quando Hades tornou a falar.
 - Não posso mudar o destino do garoto. - Apolo volta a abaixar a cabeça quando o tio diz isso, mas Hades aperta o ombro dele com delicadeza, para que volte a prestar atenção. - Mas posso dar a vocês um tempo para se encontrarem, e também, minha benção para que ele vá aos Campos Elíseos.
 - Tio... - O deus mais novo sido surpreendido por aquela oferta, ele encara Hades sem saber o que responder direito, seus olhos arregalados ainda em choque, mas consegue se controlar e aproveitar a oportunidade, sabia que seu tio era um deus incompreendido, e que no fundo era extremamente gentil, mas aquilo era mais do que ele esperava, quando chegou ao submundo, no fundo não esperava conseguir algo tão incrível. - Obrigado, é muito gentil, estarei em débito com o senhor para sempre.
 - Seu modo de agradecer é estranho, sobrinho. - Hades permite-se a sorrir, o que choca Apolo inicialmente, mas o deus mais novo acaba retribuindo o sorriso, é claro que preferia levar Ícaro de volta, mas já que não era uma opção, apenas poder encontrá-lo era o bastante. - Venha, vou levá-lo aos jardins, poderá se despedir. Hades estende uma das mãos para ajudar o outro a se levantar, depois sai da sala com ele.
 Pouquíssimos deuses já haviam caminhado pelos corredores daquele palácio, onde o deus do submundo tinha passagens para cada extensão de seu reino, Apolo observou tudo com muita cautela, existiam as divisões infernais, onde almas criminosas sofriam pela eternidade, e também as portas para o vazio onde as almas perdidas se encontravam, pobres mortais que não tiveram a chance de serem enterrados com dignidade, sentiu um calafrio percorrer seu corpo quando pensou que Ícaro poderia ter ido para tal lugar, era um tipo de sofrimento tão ruim quanto os que ocorriam nos campos de punição, na opinião de Apolo.
 Hades o direcionou para uma porta afastada, e Apolo sentiu que era um lugar extremamente seleto, apenas aqueles com a benção do verdadeiro deus do submundo poderiam entrar ali, aqueles que tivessem uma morte heroica, e os que eram amados pelos deuses, como no caso de Ícaro. Antes que Apolo pudesse abrir a porta, seu tio coloca um braço na frente de seu corpo, bloqueando sua passagem, fazendo com que o deus mais novo o encarasse nos olhos.
 - Não pode ficar tempo demais lá dentro, ou não poderá voltar, entendeu? - O tom de voz de Hades demonstrava preocupação genuína, era um aviso que deveria ser levado a sério.
 - Obrigado por isso. - Apolo agradeceu mais uma vez, e depois tornou a encarar a porta a sua frente, tentando reunir coragem para avançar.
 Todas as portas tinham decoração digna ao portal que existia em seu interior, e aquela era toda coberta por flores e galhos entrelaçados, era claramente a entrada para os Campos Elíseos, o destino de todos os heróis, e de repente, Apolo se viu nervoso. Tinha medo do que aconteceria quando entrasse no lugar e se encontrasse com Ícaro, o que deveria dizer ao garoto?
 Não tinham tanto tempo, e o deus não queria que o único e breve encontro dos dois fosse tomado por um aspecto triste. No fundo de seu coração, tudo o que queria era abraçar o outro e chorar, pedir perdão por não poder protegê-lo, mas sabia que seria apenas desperdício de um tempo que já não tinham. Respirou fundo e entrou no lugar.
 O primeiro fato ao qual se atentou foi que a energia que o lugar emanava era de paz extrema, todo o nervosismo e a tristeza que sentira até o momento em que enfim entrou, haviam desaparecido. Olhou ao redor e viu que, como esperava, era um grande jardim. Havia ouvido várias histórias sobre os Campos Elíseos, sabia que cada pessoa o percebia de algum modo, e para Apolo, isso fazia com que o jardim fosse repleto de flores de jacinto, e também loureiros, uma lembrança dos amores de seu passado, em outra ocasião talvez visse tais lembranças como algo doloroso, mas não havia espaço para esse sentimento ali dentro.
 Não tinha ideia de como deveria procurar por Ícaro, mas logo percebeu que não seria necessário. De longe, avistou uma figura se aproximando, reconheceu o rosto de seu amado mesmo de longe, percebeu que o garoto era um pouco mais baixo do que a forma física que Apolo havia assumido, o que não fazia dele menos atraente.
 Ensaiou mentalmente o que diria quando se aproximasse do garoto, teria que começar se apresentando, é claro, era a primeira vez que os dois se encontrariam fisicamente, teria que se apresentar, seria estranho, mas era necessário. Ou pensava que fosse. Não pôde conter um suspiro surpreso quando Ícaro simplesmente pulou em um abraço, trazendo o deus para perto de si com força, como se fosse apenas uma miragem que precisava ser mantida ali, perto, para existir.
 O choque durou apenas alguns segundos, Apolo retribuir o abraço, finalmente poder tocá-lo era tudo com o que havia sonhado durante todo aquele tempo, e agora sentia como a pele de Ícaro era macia contra a sua, como ele era quente, como se ainda estivesse vivo, por um momento seu cérebro se enganou, pensou que tudo poderia ser apenas um sonho, que na verdade Ícaro estava vivo e bem, e que poderiam deixar aquele lugar juntos. Mas não era momento para lamentar e nem se desiludir, não tinham tempo. Se afastou um pouco e tocou o rosto de Ícaro com uma das mãos, fazendo com que o garoto o encarasse, agora ambos estavam sorrindo como duas crianças descobrindo um mundo novo, diferente de tudo o que já haviam visto antes, e de certo modo, estavam certos.
 - Como descobriu tão rápido quem eu era? - Apolo não pôde deixar de perguntar, acariciando o rosto de Ícaro com uma das mãos, querendo poder gravar aquela sensação em sua mente pela eternidade.
 - Que outro deus ou mortal teria olhos tão dourados? Você é o próprio sol, Apolo, é o meu sol.
 Não era possível manter o autocontrole depois de ouvir algo como isso, Apolo trouxe Ícaro para mais perto, selando seus lábios contra os do garoto. O beijo não durou muito tempo, mas a sensação era de que haviam se passado horas, era claramente uma primeira vez para Ícaro, mas mesmo desajeitado, pousou uma das mãos na parte de trás da cabeça de Apolo, como se restringisse seus movimentos, mesmo que os dois soubessem que o deus não tinha a menor intenção de se afastar tão cedo. E por um segundo, enquanto os dois estavam absortos por aquele beijo, Apolo teve visões.
 Não saberia dizer se tinha algo a ver com sua natureza como deus das profecias, mas naquele momento onde o tempo parecia haver parado, ele viu como as coisas seriam se Ícaro tivesse chegado até uma cidade em segurança. Se viu com o garoto em um dos festivais gregos em homenagem aos deuses, era uma grande celebração, com muita música, o tipo favorito de Apolo. E no meio da multidão viu Ícaro correndo, animado, ele se virava com um sorriso e estendia uma das mãos para o deus, que o seguia. Era uma visão perfeita, tudo o que Ícaro poderia ter tido a chance de vislumbrar, não mais, e em parte, era sua culpa.
 Afastou sua boca da de Ícaro, mas continuou próximo, encostou sua testa na dele e fechou os olhos, todo o desespero, a noção de que aquele garoto estava sendo privado de um futuro por sua causa voltou a tomá-lo, e não soube mais o que dizer. O que fez com o garoto tocasse uma das bochechas de Apolo, dando um tapa delicado, apenas para que abrisse os olhos, e quando o fitou, o deus viu que Ícaro sorria.
 - Ícaro, eu preciso que me perdoe, não acho que terei paz se não tiver seu perdão... - A cada palavra que pronunciava, Apolo sentia uma pontada de dor em seu peito, sabia que estava arruinando um momento perfeito, o único que teriam, mas se não conseguisse o perdão do amado, provavelmente jamais viveria em paz consigo mesmo.
 - Você veio até o submundo para isso? Que exagero! - Ícaro ri, não zombava dos sentimentos de Apolo, mas aquilo era realmente adorável, saber que um deus se importava com ele àquele ponto, puxou uma das mangas do deus para que ele se abaixasse e ficasse de sua altura, e quando este o fez, Ícaro se pôs na ponta dos pés e beijou sua testa, com carinho, o que fez com que Apolo voltasse a sorrir. - Você tem o meu perdão, e o meu amor, prometa que nunca irá se esquecer do tempo em que passamos juntos, é a única coisa que preciso ouvir de você antes que vá.
 - Eu jamais o esquecerei, você faz parte de mim agora, Ícaro. - Apolo se permite a voltar a sorrir, só nesse momento percebeu que segurava uma das mãos do garoto, e era assim que tudo deveria ser, eles não deveriam estar se encontrando nos Campos Elíseos, deveriam estar em uma cidadezinha, observando o mar, se divertindo, não se despedindo daquele modo. - Não quero ir embora...
 - Você tem que ir, não pertence à esse mundo e sabe disso. - Ícaro volta a tocar o rosto de Apolo com ternura, encarando o deus nos olhos, para que ele aceitasse bem suas palavras, com atenção. - Precisa ir agora, Apolo.
 Não queria, virar as costas e sair seria desistir de Ícaro para sempre, Apolo sabia disso, para sempre era muito tempo, mais do que achava que conseguiria suportar. Mas desde o começo, aquele deveria ser o final para a história dos dois, até mesmo o deus sabia disso, mesmo que Ícaro sobrevivesse à viagem, mortais tem uma vida breve, cabe aos deuses suportar a dor da saudade, se mortais julgavam suas vidas amorosas, deveriam compará-las ao que acontecia com os deuses.
 - Mesmo aqui, nos Elíseos, jamais esqueça do quanto te amei, e continuarei te amando, prometa-se isso, e eu farei o mesmo. - Apolo já havia aceitado seu destino quando disse isso, e pela primeira vez nos últimos minutos, sentia-se em paz, viu Ícaro voltar a sorrir, desejou poder gravar aquele sorriso à ferro em sua memória.
 - Eu o amo, e o amarei para sempre, mesmo aqui, você é meu sol. - Ao dizer isso, Ícaro puxou Apolo para perto uma última vez, para um último beijo, mais urgente do que o primeiro, mais caloroso, mas dessa vez os dois tinham plena noção de quando precisavam se separar.
 Apolo sentiu como se uma força invisível o puxasse para longe de Ícaro, teve que resistir ao impulso de tomar sua mão e arrastá-lo com ele, mas sabia que era impossível, o garoto estava morto, e teria que continuar assim. Em um momento sentia os lábios de Ícaro junto aos dele, e em outro, estava de joelhos no chão do corredor, em frente à entrada dos Elíseos.
 Se manteve naquela posição por um bom tempo, e não pôde evitar que as lágrimas de se formarem novamente. Sabia que o amor que sentira por Ícaro continuaria em seu coração para sempre, que a sensação dos lábios de Ícaro nunca deixariam os seus, que o calor que sua pele exalava era algo do qual jamais esqueceria, mesmo assim, agora que sentia que era definitivo, doía muito.
 - O seu maior problema, é ter um coração tão gentil. - Apolo sentiu a mão do tio em seu ombro, como se tentasse lhe oferecer conforto, e sabia que Hades estava certo.
 O coração gentil de Apolo era a fonte de toda a sua angústia e dor. Tal como o amor fora a causa da morte de Ícaro. Mesmo opostos, mesmo sendo um deus, e um mortal ceifado de seu tempo tão precocemente, os dois eram muito parecidos. Tivesse isso um significado bom ou ruim, era a mais pura das verdades.
 A capacidade de Apolo de amar era lendária, e o deus sabia que isso significava que não poderia se desvencilhar daquela realidade, não seria a última vez em que se entregaria nos braços de um mortal, sedento por seu amor, mas de uma coisa ele tinha certeza. Jamais haveria alguém como Ícaro, tão sincero e inocente. Mesmo assim, estava decidido a nunca mais deixar algo do tipo acontecer com qualquer um de seus amantes, a partir daquele momento, a função maior de Apolo seria proteger tudo o que amava, como um modo de manter a memória de Ícaro tão viva em sua mente, passaria a se tornar um protetor, de jovens que, diferente do garoto que amou tanto, deveriam sobreviver à fase adulta e experienciar longas vidas, antes de ceder aos braços da morte.

O Lamento de ÍcaroWhere stories live. Discover now