Capítulo IV

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Adam está em sua sala, ocupado com o que eu imagino ser relatórios semanais que ele entrega para Anabele, com informações sobre todos nós. Eu o observo por alguns segundos, notando a pele marrom que eu sempre achei ficar bem por cima de mim. Balanço a cabeça, ignorando as distrações; eu preciso de foco.

— Você não devia estar em Birden? — Ele pergunta, sem levantar os olhos dos papéis em sua mesa. Eu sorrio, mesmo sem querer.

— Senti sua falta — Digo e ele dá um longo e audível suspiro. Adam parece exausto, com a barba para fazer, cabelo bagunçado e olheiras escuras sob os olhos. Por um momento eu penso em perguntar o que ele sabe, mas logo mudo de ideia. Apesar de sempre ter sido gentil, eu sei com quem a lealdade dele realmente estaria, caso ele tivesse de escolher — Não diga para ela que vim para casa, ok? Estou exausta e Craig estava insuportável hoje.

Algo que eu imagino ser afeto suaviza seu rosto e eu sei que o venci por hoje. Ele está cansado demais para se lembrar que deveria me repreender ao invés de facilitar a minha vida. Aproveitando a oportunidade, caminho até ele e massageio os seus ombros, sentindo os músculos tensos sob a minha mão. Coloco um pouco de pressão ali.

— Eu estou sendo punida por algo? — Pergunto com cautela, satisfeita ao notar que ele não repele o meu toque mas sim relaxa sob ele — Anabele não me deixa ver Isaac.

Tento soar magoada e dócil para convencê-lo a me dizer o que eu quero, mas fico surpresa com o quão realmente estou chateada. Nunca fiz nada além do que me foi pedido e sempre fiz um bom trabalho. A ideia de ficar longe do meu irmão parece doer mais do que a traição em si.

Isaac é um garoto tímido de onze anos, pequeno demais para a idade e com cachos loiros e corpo frágil que parece estar sempre perto de quebrar, caso eu não preste atenção o suficiente. Ele não tem muito contato com outras crianças, então fala pouco e passa tempo demais sozinho. Quando Anabele o entregou para mim e mandou que eu o mantivesse vivo, ele tinha três anos e mal sabia falar. Era uma grande responsabilidade e eu era praticamente uma criança na época, mas isso nunca me impediu de me afeiçoar pelo garoto. Cada coisa que eu faço é para mantê-lo seguro. Me manter longe dele é uma forma de me lembrar quem está no controle e eu a odeio por isso.

— Horan o trouxe para casa, pouco antes de você sair — Adam diz e alívio inunda meu peito. Eu o solto, mas ele agarra a minha mão antes de eu me afastar — Ninguém o machucaria, Juliet. Você sabe disso, não sabe?

Até parece.

Com a outra mão, ele segura o meu rosto e eu deixo que ele o faça. O cansaço em seu rosto é substituído por algo mais quente e eu preciso me lembrar de que tenho coisas para fazer.

— Sentiu mesmo a minha falta? — Ele acaricia minha bochecha antes de seus dedos se movem até a minha garganta e um arrepio percorre minha espinha.

— Eu realmente preciso ir — Sussurro, em um aviso mais para mim do que para ele.

Adam me solta, mas seu olhar permanece fixo em minha boca por um instante antes de assentir com compreensão.

— Tudo bem, nós temos tempo — Ele sorri e volta sua atenção ao trabalho. Eu me desvencilho dele antes de fazer algo muito idiota como pedir para que ele coloque suas mãos em mim novamente.

Caminho impaciente até a ala de dormitórios onde Isaac está, ignorando os milhares de alertas em minha cabeça dizendo que isso parece fácil demais. Eu abro a porta com cuidado, esperando não acordá-lo; preciso deixar tudo pronto antes de ele começar a fazer perguntas que eu não sei se posso responder. Entro no quarto e vejo meu irmão dormindo pesadamente, encolhido em sua cama, alheio ao caos do mundo em que ele vive. Eu dou uma rápida olhada, apenas para me certificar de que ele está realmente bem.

O quarto que eu divido com Isaac é pequeno e tem apenas duas camas, um pequeno armário com um espelho na porta e uma mesinha, onde ele passa grande parte do seu dia desenhando, imerso em seus próprios pensamentos. Alguns de seus desenhos estão colados na parede, trazendo um pouco de cor ao ambiente cinzento. Abro o armário e junto os nossos poucos pertences, colocando tudo em uma pequena mochila. Tento não pensar demais no que estou fazendo, apesar de as minhas mãos tremerem de leve. Eu estou fugindo de Anabele. Ninguém escapa dela. Não vivo, pelo menos.

Está tudo bem, digo a mim mesma. Vai dar certo.

Com a mochila nas costas, vou até Isaac, para acordá-lo. Ele sempre me obedeceu, então não vai ser difícil tirá-lo daqui. Não há quase ninguém no Forte e Anabele acha que eu estou em Birden. Não há motivos para pânico.

— Isaac — Eu chamo com delicadeza, sacudindo seus ombros de leve — Eu preciso que você venha comigo. Agora.

Seus olhos se abrem lentamente, revelando confusão e sono. Ele olha ao redor, tentando entender o que está acontecendo.

— Juliet? — Ele esfrega os olhos, a voz arrastada e rouca.

— Não dá tempo de explicar. Levante e vista algo quente, preciso que venha comigo, tudo bem?

Isaac me olha com uma mistura de desorientação e sono, mas ele confia em mim. Sem fazer muitas perguntas, começa a se levantar.

Enquanto ele se prepara, pegando o casaco que eu entrego para ele, eu aproveito para examinar o cômodo, certificando-me de não esquecer nada importante. Meus olhos passam rápido pelo espelho, e algo gelado parece tocar minha espinha, quando eu volto meu olhar até ele. Merda.

A imagem refletida não é a minha. Me viro rapidamente para encarar Anabele que sorri maliciosamente para mim. A realidade sólida se desfaz diante dos meus olhos, transformando Isaac, que está se vestindo preguiçosamente, em uma fumaça negra e espessa.

— Você devia estar em Birden — a voz de Anabele ressoa. Ela dá dois passos até mim e me agarra pelas bochechas, suas unhas afiadas se enterrando na pele macia — Por que eu tenho a impressão que está tentando fugir de mim?

— Eu não sou fã da ideia de morrer aos pés de um homem que eu não conheço — Respondo. Se ela está surpresa por eu saber sobre Raphael ou confusa pelas minhas palavras, não demonstra. Ela parece mais linda do que nunca, com a pele de marfim praticamente brilhando, emoldurada pelo seu cabelo que cai em longas ondas negras. Seus olhos escuros prometem violência e eu faço o melhor para esconder o pânico que ameaça subir pela garganta, em forma de bile.

Anabele ri, um som frio e cruel.

— Eu nunca gostei de você — Ela comenta com uma honestidade que eu nunca ouvi antes em sua voz e eu sinto uma estranha vontade de rir junto com ela — Sempre tão burra. Achou mesmo que eu iria me sentar e pedir permissão para usá-la em meus planos? Quem você pensa que é?

Seu aperto se intensifica e sangue escorre pela minha pele, enviando ondas de dor por todo o meu corpo. Eu tento lutar, mas ela é forte demais.

— É uma pena que eu não irei vê-lo matá-la — ela sussurra, próxima ao meu ouvido e eu paro de me debater, surpresa com suas palavras. Minha visão se turva diante de mim e uma onda de sonolência toma conta, à medida que suas palavras se infiltram em minha mente — Diga ao seu pai que eu disse oi.

Meu instinto de sobrevivência pede para que eu lute ou corra para longe de seu domínio, mas é tarde demais. Anabele sorri uma última vez e uma memória esquecida de fumaça, fogo e olhos cinzentos, que parecem um reflexo dos meus, me enviam para um sono escuro e sem sonhos.

Lionheart - Livro IWhere stories live. Discover now