Ela

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Percebo que a playlist da minha banda favorita está tocando bem baixinho e sorrio. Tomo isso como um sinal de que eu e esse cliente misterioso vamos nos dar bem.
Ele me deu uma boa olhada há pouco. Depois, desviou o olhar para o para-brisa e não me olhou mais. Ele é incomum. Eu o apelidei carinhosamente de Homem de Gelo. Essa é a cor dos seus olhos, mas o apelido não vem apenas disso. Ele é frio.
Na maneira que olha.
Na maneira que fala.
E eu não acho que seja só comigo.
Ele só é... assim.
É muito reservado e tem o semblante tão fechado que me deixa na dúvida se sabe sorrir. Iceman é diferente de todos os clientes que eu já tive. Mais intrigante. Mais interessante. Mais bonito.
Ele me impactou, mas agora está me preocupando.
Ele sequer me tocou. Não colocou nem a mão na minha perna. Ele continua quieto e isso me assusta um pouco. Percebi que passamos por alguns motéis na Marginal Tietê. Ele não parou em nenhum. Talvez queira algo mais requintado.
Talvez.
Talvez eu tenha me estrepado.
Se tem algo que a gente descobre quando lida com os desejos mais obscuros das pessoas é que a maldade não tem um rosto. Ela pode estar dentro de qualquer um.
— Posso fazer uma pergunta? — Meu tom de voz é gentil. Meu tom é calculadamente gentil. Ele faz um breve meneio, atento ao trânsito.
— Para onde está me levando?
— Para o meu apartamento. — Eu preferia que fosse para um motel, aonde tem funcionários por quem eu poderia gritar se precisasse, mas poderia ser pior. Poderia ser uma casa. Em prédios eu tenho a impressão de que os vizinhos estão mais acessíveis para me ajudar se eu pedir por socorro.
Está tudo bem.
Ele para em um semáforo e gira o rosto para mim.
— Está tudo bem — repete as palavras que eu estava dizendo para mim mesma. Elas têm um peso maior vindo dele. Especialmente porque as pronuncia olhando nos meus olhos. — Não precisa se preocupar. Eu não vou te machucar, Gabrielle.
Gabrielle.
Meu nome dito em seu tom profundo e rouco provoca arrepios na minha pele. É delicioso. É tão delicioso que fico com vontade de escutá-lo me chamando da maneira certa. Pelo nome certo.
Pelo meu nome verdadeiro.
— Eu não estava pensando o contrário.
— É mentira. Não minta — ordena desviando o olhar de volta para a rua. Eu sinto sua ordem esfriar o meu estômago, mas o tom dele parece nunca se alterar.
É sempre baixo.
É sempre tranquilo.
É sempre firme e respeitoso.
— Tudo bem. — Mordo o lábio. — Eu estava pensando, mas não é nada pessoal. Eu estou sempre preocupada comigo. Eu corro muito perigo entrando no carro de homens estranhos. Nunca dá para saber se vou pegar um cliente maluco. É na sorte. É uma roleta russa. Uma pistola automática que eu disparo mais vezes do que eu gostaria.
— Eu entendo. É minha culpa que tenha ficado com medo de mim. Eu deveria ter falado algo antes. — Ele faz uma pausa, pronto para fazer eu me sentir melhor. — Nós ainda estamos longe. Eu moro nos Jardins — refere-se a um bairro nobre na capital paulista onde estive da última vez para ajudar uma colega.
— Está bem. — Mordo o lábio cantarolando a música que está saindo do rádio até que gire o rosto para me olhar. Paro e mordo o lábio. — Desculpa, essa é a minha banda favorita.
— Também é a minha.
— Que coincidência — sorrio. Ele não responde.
Desvia o olhar e o volta para a rua, ficando em silêncio. E eu o imito porque entendi que é o que quer. Ele não está a fim de papo.
Eu acho que ele tem interesses muito claros comigo e respeito isso.
Esse ramo não se trata apenas de foder. Trata-se de aprender a entender o que as pessoas querem e esperam de você quando te contratam. Eu acato ordens. Eu realizo fantasias. Eu concedo desejos. Eu posso fingir que sou a mãe do cara ou a mulher do melhor amigo. Uma vez tive que fingir que era a irmã. Eu também posso foder gostoso um homem se ele quiser ser fodido. Eu dou o melhor de mim em todos os programas. Essa é a minha primeira regra. Logo depois vem nunca irritar os meus clientes. Eu os deixo o mais confortável que posso. Eu os entendo e os acolho. Eu respeito os desejos deles. Primeiro porque os que não gostam do tratamento não voltam e segundo porque tirar a roupa e ficar vulnerável com um completo desconhecido pode ser muito perigoso.
Esse trabalho não é para todo mundo.
Precisa-se ter cuidado.
Tato.
Malícia.
Eu ainda não acredito que consegui esse cliente. Ele é tão bonito. E é rico. Eu sei disso pelo terno de aparência cara e pelo carro. Fiquei tão feliz quando o avistei vindo ao meu encontro. Era para ele ser meu.
Não é comum termos clientes do porte dele dando sopa na porta do Torres. Não que não tenhamos clientes com poder aquisitivo. Nós temos. Eu especialmente. Não fazemos só o programa de rua. Ficamos nela chamando clientes apenas quando estamos com tempo livre. Nossa cafetina mantém um site com o nosso catálogo. É de onde vem a maioria dos nossos programas. Esses clientes que chegam até nós pela internet raramente vêm até nossos apartamentos. Também, quem quer ir naquele bairro foder? É mais barato, mas a maioria opta pela própria casa ou um motel.
Eu tinha chegado exausta de um programa com um cliente antigo em um motel em Moema. Tomei um banho, mudei de roupa e mesmo que eu quisesse me jogar na cama e dar o dia por encerrado eram apenas onze da noite e eu não podia. Eu paro a uma da manhã. E só paro porque preciso acordar cedo todos os dias.
Me obriguei a refazer a maquiagem e sair para trabalhar.
Para a minha noite ser perfeita, o ideal para que eu conseguisse parar de trabalhar no horário certo, era ter conseguido dois programas de uma hora no meu quarto. Eu não funciono pela manhã, então não tenho o hábito de pegar programas fora do puteiro a essa hora. Eu só pego programas que adentrem a noite quando eles valem muito a pena. Exatamente como esse.
Ele disse que vai pagar quanto eu quiser. Caramba! E essa nem é a melhor parte. Ele é. Ele é um sonho. Um verdadeiro sonho.
Fico concentrada apenas reparando nele. Iceman é completamente deslumbrante. Não sei nem como a minha voz saiu quando o vi. Ele tem cabelos loiros, tão claro quanto os meus eram antes que eu os descolorisse, cortados rente nas laterais, com um topete em cima, bem baixo. Estou morrendo de vontade de enterrar meus dedos neles. Espero que me deixe fazer isso enquanto estiver se enterrando dentro de mim. Será delicioso. Caramba! Estou mesmo empolgada com um programa? Eu nem me lembro quando foi a última vez que isso aconteceu.
Eu acho que foi com aquele americano. Eu estava doida para saber como era trepar com um gringo. Bom, com brasileiros é melhor. Pessoas que não usam a língua para beijar me dão agonia. Usa a língua. Usa a língua droga.
O que estou dizendo? Muitos se recusam a beijar a minha boca. Muitos agem como se eu não fosse uma pessoa.
Ele é uma desses caras?
Espero que não.
Espero que me trate bem. Espero que me beije. Eu acho que é esperar demais depois do bonito e rico. Bom, uma puta pode sonhar.
Eu não gosto de beijar a maioria dos meus clientes, mas um beijo na boca desse em específico eu queria. Ela é tão bonita. É desenhada. Os olhos dele são magníficos lagos congelados. O nariz é reto e o rosto bem barbeado. Praticamente esculpido. Ele tem ombros largos. Bem largos. Ele é grande. Não só em músculos, embora eu ache que dentro da sua camisa devem ter vários, mas grande em tamanho e imponência. Ele parece o Joe Burrow. O jogador de futebol americano.
Será que o pau dele faz jus a tudo isso?
De novo, eu acho que é querer demais.
Ele tem cara de dominador. Eu amo um bom homem dominador. Se tiver a aparência dele logicamente. Reparo no quanto seu terno preto é bonito e no quanto a gravata vermelha parece alinhada. Ele tem cara de homem negócios. Tem postura. O que será que faz para viver? Ele poderia ter a garota que quisesse. De graça. Por que está com uma garota de programa? Ele simplesmente me viu e sentiu vontade de foder? De me foder? Ele tem família? Uma namorada? Encaro sua mão no volante. Tem uma marca de sol fina de um anel no dedo anelar da mão direta. Ele era noivo? Talvez fosse só um anel.
Em todo o caso, conquistar o coração de um cara desses deve ser difícil.
Não deve ser para qualquer uma.
Fico curiosa sobre todos os meus clientes, até aqueles de quem eu não gosto. Crio várias fanfics. Isso quando não estou no Mundo de Gabrielle.
Para suportar tudo que os clientes fazem comigo eu criei um mundo só meu, onde me escondo quando preciso. Especialmente enquanto estão fodendo comigo. Eu não deixo que isso me afete, me abale ou me desestabilize.
Não mais.
Agora, eu fico nesse mundo colorido onde sou feliz para sempre com um príncipe encantado

e os nossos três filhos.
Duvido que eu vá precisar do meu mundo de fantasias com esse homem na minha realidade. Eu o achei muito atraente e me interessei pelo mistério que demonstra ser. É tão raro eu querer fazer um programa.
Querer de verdade.
Me endireito no banco e continuo sentada de maneira provocante, de pernas cruzadas, de modo que minha coxa fique à mostra para ele.
Bom, até que isso acabe ficando desconfortável.
Eu sei que preciso manter as aparências, mas não me contenho e acabo me encolhendo por causa do ar-condicionado.
— Está com frio? — Ele não me olha diretamente, mas acabou de entregar que está completamente atento a mim. Não minto.
— Não precisa se preocupar comigo. — Ele não desliga o ar por minha causa. Ele apenas assente.
Por isso, fico estarrecida quando para no semáforo fechado, tira o paletó e me entrega.
Ele é gentil.
Bonito, rico e gentil.
— É muita delicadeza da sua parte — respondo tocada pelo gesto. Estou surpresa e encantada. — Obrigada.
Ele não responde. Por isso eu já esperava.
Ele não é do tipo que gasta palavras a troco de nada.
Me pego sem saber como me cobrir. Não vou ficar muito sexy se continuar totalmente coberta com o seu paletó, mas se eu não me cobrir vou continuar com frio. Está nevando aqui.
Ele repara no meu dilema.
— Não precisa se mostrar para mim — murmura olhando em frente. — Eu vou apreciar você no momento certo. — Ele não é gentil. É muito gentil.
E conseguiu molhar a minha calcinha apenas com essa promessa.
Fico confortável, apenas curtindo a música e a paisagem de tirar o fôlego que está surgindo ao meu lado. Se um dia eu fui uma puta triste, eu nem me lembro.

Perdão, amorWhere stories live. Discover now