3° Não tome banhos de chuva muito longos

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Decepcionado, de coração partido e faminto. Passaram-se alguns dias desde o fatídico acontecimento que colocou minha preciosa vida em risco. Um semana, talvez? Não sei dizer muito bem, pode ser por causa da chuva que não parou de cair desde quando escureceu.

Horas na chuva não te deixam pensar direito no tempo, apenas enchem sua cabeça de dor e seu corpo de frio. Megumi estava cochilando em meu ombro há um tempo, mais cedo brigamos, ele disse que não estaríamos naquela situação se eu fosse minimamente responsável e não um cupido estúpido. Talvez, talvez, ele esteja certo, mas nunca admitirei isso, então coloco a culpa por esse pensamento nos roncos de minha barriga mais altos que eles.

Não voltamos para a frente daquele bar e toda vez que me deparo com luzes neon tenho arrepios em toda a extensão de minha espinha. Nos tornamos nômades sem dinheiro, já que meus dracmas são inúteis nesse mundo.

— Céus, até quando isso vai durar? — questiono retoricamente olhando para o céu escuro sem me incomodar com os pingos de chuva que caem em meus olhos.

Estou com saudades de casa, do rosto cansado de Miwa e dos berros ensurdecedores de Utahime. Me pergunto com quem ela está gritando agora, espero que, se estiver, não esteja tão satisfeita quanto quando gritava comigo. Sou único na vida dela, sei disso.

— Ei, pai solteiro — uma voz feminina que eu lembrava vagamente me chamou. Talvez fosse Utahime zombando de mim.

Olhei para cima movido pela esperança da ficha do velho ter caído e ele perceber que cometeu um grande erro, mas recebi o rosto da mulher do almoço do outro dia.

— Ei, mulher do almoço — cumprimentei de volta, minha voz saiu mais rouca do que eu me lembrava dela estar.

— “Mulher do almoço”? — ela questionou com uma risadinha. Apenas dei de ombros em resposta.

— Você não está envolvida em sua fumaça habitual — observei a falta de um nojento cigarro em sua boca.

— Chuva — ela olhou para cima como se conseguisse ver a água através de seu guarda-chuva. Levantei as sobrancelhas uma única vez em entendimento. — E você não está com sua jaqueta de couro habitual.

Apontei para Megumi com os olhos, percebendo de soslaio que ele tremia e seus olhos se mexiam fervorosamente como se estivesse tendo o pior pesadelo de todos.

— O — ela respondeu. Movi meu ombro para tentar acordá-lo, mas recebi apenas um espasmo em troca.

Quando percebi, Shoko já estava agachada ao lado dele com as mãos em sua testa.

— Meu Deus, ele está parecendo um cubo de gelo! — ela tirou o próprio casaco e substituiu minha jaqueta encharcada por seu casaco de lã.

Eu fiquei em alerta, não sabia que anciões cupidos poderiam ficar doentes e preferiria morrer do que acreditar que Megumi realmente era uma criança por dentro e por fora. Shoko o levantou e eu tive que prontamente tomá-lo nos braços antes que ele caísse.

— Toma — ela me entregou o guarda-chuva, que eu tive um pouco de dificuldade de carregar ao mesmo tempo que levava uma criança desacordada nos braços, e me guiou para um carro vermelho belíssimo.

Entrei no carro depois de deitar o Megumi no banco de trás e pela primeira vez senti a queimação no meu peito que antecedeu um espirro daqueles.

Eu estava no carro de uma estranha, de novo confiando em humanos, não aprendo nunca? Mas quem sabe ela não vai tentar me jantar, afinal, é a mulher do almoço.

Shoko entrou no veículo e deu partida, tirando-o habilmente da vaga e indo rumo a sei lá aonde.

— Há quanto tempo vocês estão na chuva?

— Desde que começou, acho — dei de ombros e ela xingou baixinho.

— Como você pode ter ficado na chuva desde às seis horas da tarde?! — ela esbravejou e eu só consegui espirrar em resposta. Shoko xingou outra vez — Droga, pai solteiro! O hospital mais próximo é daqui há uns vinte quilômetros! — ela fez uma curva brusca e eu me segurei no painel.

Observei as casas tornando-se cada vez mais formidáveis, aconchegantes. Olhei mais elementos do lado de fora e uma percepção me veio à tona, eu havia sido mandado para uma cidade do interior.

Shoko estacionou o carro quase tão rápido quanto pegou Megumi nos braços e subiu a escada que dava para uma casa com janelas de madeira. Segui a mulher e entrei na residência a tempo de vê-la deitar o menino num sofázinho de couro gasto e fechar os botões do casaco o qual vestiu ele.

— O que está fazendo? — a acompanhei até a parte da cozinha, onde ela procurava loucamente algo nos armários.

— Estou procurando um termômetro e um remédio.

Eu esfreguei meu nariz impedindo que outro espirro escapasse de mim e me encostei na pia.

— Como sabe qual remédio é o certo?

— Sei que é difícil de acreditar, mas uma mulher pode fazer faculdade, ok? — ela suspirou, percebendo que ativou seu modo defensivo sem necessidade.

— Saquei, mulher, estudo, anos 50. Não precisa se desculpar — não me reconheci quando disse isso, mas deixei passar, ela estava ajudando Megumi.

— É, eu era a única mulher na minha sala e sempre que alguém me questiona sobre meus estudos me remete à toda subestimação que tive que passar até ter meu diploma nas mãos. — ela fechou a porta do armário da vez e foi até o sofá com um termômetro e um frasco em mãos, não me arrisco a chutar o nome do remédio mundano que o preenchia.

Remédio mundano.

— Acha que vai funcionar? — eu a observava colocar o termômetro cuidadosamente debaixo do braço de Megumi — Quero dizer, ele parece bem ruim — contornei meu questionamento.

— Se ele não melhorar até amanhã, peço para Geto levá-lo ao hospital da cidade grande.

Eu resmunguei em concordância, mas logo a olhei atento.

— Geto?

— Um velho amigo meu — ela respondeu simplória.

Não sei se confiaria em um estranho para levar Megumi em uma viagem de vinte quilômetros, e eu também não estava afim de ser sequestrado.

Olhei para Megumi, que estava encharcando o casaco da mulher com a água da chuva presa em suas roupas.

— CÉUS! — ela gritou quando viu o número no termômetro e não me deu tempo de perguntar — Ele está com trinta e dois graus celsius!

Ela pulou do sofá, pegou o telefone e começou a discar loucamente, até achei que ela quebraria a roda de ferro.

— O que está fazendo?

— Ligando para Geto.

𝐄𝐬𝐭𝐮́𝐩𝐢𝐝𝐨 𝐜𝐮𝐩𝐢𝐝𝐨Where stories live. Discover now