4° Não aceite café de estranhos

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Aparentemente nem Shoko nem esse tal de Geto se importavam em ter um cara ensopando o banco de trás de seus carros. Na verdade, Geto só tomou conhecimento da minha presença quando já estávamos sob a luz branca cegante do hospital, rodeado de pessoas com os rostos cansados e sem a Shoko, ela disse que voltaria em um instante e já se passaram uns dez minutos de instantes.

Eu e Geto não trocamos nem uma palavra, ele nem sabe meu nome. Quando chegamos no hospital, ele me cumprimentou com um aceno de cabeça e só, seus olhos não brilharam por ver uma beleza de outro mundo. Estranho.

Eu tremia um pouco, pelo frio que minhas roupas coladas no meu corpo me transmitiam e de nervoso por ninguém ter vindo falar conosco sobre a situação de Megumi. Aquele pirralho ancião, eu deveria estar feliz por ele estar desacordado, assim ele me deixa em paz, mas não é nem um pouco disso o que estou sentindo. Me levanto da cadeira velha e começo a andar pelo corredor olhando de porta em porta até achar o cupido anão deitado em uma cama, coberto com lençóis brancos e impecavelmente passados.

Me esguio um pouco mais até ver Shoko dentro da sala conversando com um médico rechonchudo que cospe algumas gotículas de baba enquanto fala sem parar. Abro a porta e sou recebido com um alerta de reprovação.

— Você não pode entrar agora — o baixinho me empurra para fora e eu sinto o sangue de meu rosto ferver. Quem ele pensa que é?

— Com licença, ele é meu filho — uso meu tom de autoridade mais arrogante possível, o que faz o médico parar e olhar para mim.

— Bom, nesse caso — ele ajusta os óculos redondos como suas bochechas e mexe nos papéis parecendo nervoso — Seu filho chegou com um caso sério de hipotermia, uma ou duas horas depois e sabe-se lá o que aconteceria com ele — franzo o cenho olhando para Megumi e seus ridiculamente grandes e perfeitos cílios cobrindo parte de sua maça do rosto, mas o doutor não parou de falar — Fizemos e estamos fazendo o possível, agora só nos resta esperar. Estamos medindo a temperatura dele na frequência indicada, também achamos melhor tirarmos os acessórios dos pacientes — ele foi até a mesa de madeira presente no cômodo e me estendeu o anel de Megumi.

Eu o peguei e o observei. Saudades do meu próprio anel me invadiu e eu suspirei antes de guardar a jóia no bolso da calça.

— Você pode cuidar de você agora — o homem saiu após despedir-se de Shoko e me deixou sem palavras.

Foi como se ele tivesse virado uma chave na minha cabeça, ele saiu do quarto e eu senti a respiração gelada entrando e saindo dolorosamente de meus pulmões. Tossi algumas vezes e Shoko me sentou na cadeira ao lado da cama onde Megumi estava.

— Vou ver se acho algo para ajudar você — disse e saiu.

Eu fiquei observando Megumi e o aparelho que me informava que seus batimentos estavam controlados. Agora que eu sabia que ele não estava morto, um cochilo iria muito bem.

Acordei com um pigarreio e lutei contra a vontade de continuar de olhos fechados e me fingir de morto. Geto estava ao meu lado com um lençol velho e um copo de café, com certeza enviados por Shoko. Eu não disse nada de início, mas quando senti a temperatura deliciosamente quente em meus dedos não pude conter um gemido de satisfação.

— Obrigado — eu me enrolei no lençol e assoprei um pouco o café antes de tomar o primeiro gole, o que foi um erro, um grande erro — Que café é esse?

— Não coloquei açúcar.

— Que tipo de monstro você é? — mantendo minha careta de nojo e desgosto, me encostei na cadeira e, ao contrário do que eu pensava, Geto se encostou na parede ao meu lado.

— Ele vai ficar bom — isso foi uma tentativa de me reconfortar? Eu não preciso ser reconfortado.

— Eu sei — meu tom foi determinado assim como as palavras ecoaram na minha cabeça.

— Geto — ele se apresentou de um modo bruto, mas pelo menos foi uma apresentação civilizada.

— Gojo — aceitei a mão que estava estendida para mim.

Uau. Não eram só os modos dele que eram brutos, a mão calejada e firme me deu arrepios na nuca e, espera aí, aquilo são músculos do antebraço definidos? De repente eu já não estava mais com tanto frio assim.

— Sei — sua voz me tirou de meu transe e ele puxou sua mão de volta quando uma enfermeira passou no corredor.

Bufei e cruzei os braços, envolvendo-me ainda mais em um casulo dentro do lençol velho e que eu tenho certeza absoluta que tinha ácaros. Não era para eu estar admirando a forma como seu toque firme, seus músculos do antebraço e sua voz eram o antídoto para a sensação congelante que eu sentia, era para ele estar me admirando. Não gostava como ele não havia ficado hipnotizado pelos meus olhos cristalinos, achei um ultraje.

Shoko entrou no quarto e me deu um sorriso rápido antes de chamar Geto para eles conversarem em particular. Eles se afastaram, mas não ao ponto de eu não conseguir ouvi-los.

— O menino vai ter que passar a noite aqui e eu estava pensando, minha casa é pequena demais para Gojo dormir lá.

— E? — houve uma pausa até eu e ele entendermos o que ela estava sugerindo — Quer que eu abrigue um estranho na minha casa?

Parei de ouvir. Aff, até parece que sou eu que estou pedindo para ele me fazer a gentileza de me doar o sofá duro dele por uma noite. Eu até prefiro dormir aqui nessa cadeira velha de madeira ao lado de Megumi.

Os dois entraram no quarto e o homem me examinou com os olhos, ponderando se eu sou um assassino em série em potencial.

— Tudo bem.

Eu deveria ter ficado grato pela rendição dele, mas me senti um pouco subestimado. Quem disse que eu não posso ser um assassino em série? Só porquê minhas mãos são macias como nuvens de um dia ensolarado? Deve ser porquê sou bonito demais para perder tempo planejando assassinatos.

— O que acha de passar a noite lá em casa? Eu tenho um travesseiro e uma coberta sobrando.

Vi Shoko dando dois tapinhas incentivadores nas costas dele, daqueles que significam “bom trabalho”.

Ok, o sofá não era tão duro quanto eu pensava, mas minha canela e meus pés pendiam no ar quando eu me deitava.
Shoko já havia ido embora, estávamos eu na sala, meu anfitrião em seu quarto e o barulho do relógio pesado grudado na parede. Geto voltou de seu quarto com uma coberta e um travesseiro fino em mãos.

— Não são das melhores cortesias, mas não é como se eu costumasse abrigar desconhecidos no meu sofá — seu tom não era ríspido como no hospital, a voz dele apenas parecia cansada.

— Abrigar — repeti, ajeitando o travesseiro em uma das extremidades do sofá — Você falando assim parece que não tenho casa.

— E você tem? — ele me olhou com uma das sobrancelhas arqueadas, visivelmente debochado e curioso.
Bufei e arranquei a coberta de seus braços.

— Para a sua informação, sim, eu tenho. E minha casa é muito melhor do que essa espelunca de mundo no qual vocês vivem. Lá não temos essa poluição toda, caras estranhos que te enganam para tentarem te matar e nem temos que nos preocupar com a chuva — meu tom defensivo saiu mais agudo do que eu planejei.

— Por que não volta para lá então? — seu tom não ficou para trás, sua voz alta ecoou pela sala assim como a resposta ridícula em minha cabeça.

Não foi uma pergunta de verdade, foi uma esperança, um desejo colocado para fora. Um desafio o qual não podia aceitar.

— Porque não posso — meu tom me surpreendeu, ele saiu tristonho.
Até aquele momento não tinha pensado em como tudo aquilo me fazia sentir, mas nunca pensei que me sentia triste.

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⏰ Last updated: Nov 11, 2023 ⏰

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𝐄𝐬𝐭𝐮́𝐩𝐢𝐝𝐨 𝐜𝐮𝐩𝐢𝐝𝐨Where stories live. Discover now