A cigana no sebo.

65 3 1
                                    

A mulher que surge na porta da loja causa um arrepio no rapaz. 

Nariz fino e alongado, olhos escuros e profundos em um rosto enrugado, roupas espalhafatosas, cheia de lenços no pescoço e aquele chapéu de palha na cabeça. Um pressentimento, algo que nunca antes havia sentido, uma coisa que não sabia explicar, lhe invadiu.

Então quando a mulher abre a boca, não são palavras que brotam, mas uma labareda de fogo que sai engolindo e destruindo tudo ao seu redor. O fogo atinge seu corpo e ele mal consegue dar um grito. Rapidamente ela se transforma em um dragão enorme, que alça voo e do alto fica soltando chamas e queimando-o, soltando gargalhadas.

Rani acorda e senta-se na cama. Suando, respirando pesadamente, levanta-se, dá dois passos e tropeça nos chinelos que estão no chão. Apoiado na parede estica a mão direita procurando o interruptor na parede para ligar a luz.

Chacoalha a cabeça. Não consegue dormir direito.

Sua mente está lhe pregando peças. A dois dias vem imaginando coisas. Desde que recebeu a visita de uma velha cigana que pediu água na porta de sua loja. 

Velha, magra e com rosto cheio de rugas. Devia ter mais de setenta anos. Ela o impressionou.

Ele pega uma toalha e enxuga seu suor. Abre uma pequena janela que não dá para a rua e sim para um pequeno beco nos fundos. Abre a geladeira velha que tem um barbante segurando a porta e pega uma jarra de água. Toma um pouco do liquido natural e senta-se na beirada da cama. 

O ar dentro do pequeno quarto continua quente e abafado. 

Lembra-se do ocorrido:

" ---Obrigada pela água! - disse a velha quase babando - Hoje em dia as pessoas sequer recebem alguém na porta. Muito gentil de sua parte.- Encostou no batente da porta - Ohh, você tem tantos livros aqui...- disse ela olhando admirada para dentro da loja.

---- Eu compro e vendo! - Rani lhe disse, percebendo que a senhora tinha curiosidade. Queria cortar o papo logo.  A velha que seguisse seu rumo. Já tinha tomado a água. O rapaz observou que ainda segurava a jarra com as duas mãos. Ela tinha o copo na mão. Colocou a jarra sobre o balcão, quem sabe ela devolvesse o copo e encerraria o papo.

---- Que bacana! - então virou-se para ele esticando o braço e devolveu o copo, (deu certo) e então ele observou ela ficar séria. - Os livros são perigosos! Trazem conhecimento, e o conhecimento, ah, o conhecimento... Sem saber usá-lo é um perigo! - Ela apontava os dedos finos, longos e tortos, para o alto. - É como uma criança brincando com fogo! - disse ela entrando na pequena loja com várias prateleiras de madeira pregadas junto a parede velha e carcomida.

Ele volta para dentro do espaço onde tem a geladeira e o fogão, uma espécie de cozinha. Baixa uma espécie de meia- porta que foi serrada grosseiramente. Guarda a jarra de água na geladeira.

 A mulher agora caminha por entre as estantes de livros. Rani observa-a avançar, com pequenos passos e com seus olhos negros, curiosos, os dedos, finos, sujos e compridos, percorrendo a lombada dos livros. Como se estivesse procurando algum livro em especial.

--- Hummm... Sim senhor... Bons livros... Será que livros fazem os homens? Ou são os homens que fazem os livros? O perigo de um livro é que um homem pode colocar nele suas idéias e estas influenciam outras pessoas, se para o bem ou o mal... Isso pouco importa... Os livros são mágicos... sabia? - falando enquanto caminhava ela voltou-se para ele. Os olhos esbugalhados assustaram o rapaz por um instante.

Logo ele sorriu, quando se deu conta do seu medo tolo. Encostou-se no batente da meia-porta interna da loja e ficou observando a velha senhora.

---- É verdade! Sei disso.

---- Eu já li muito. - Continuou ela - Mas depois o tempo passou, passou --- a mulher abria um livro e em seguida fechava, pegava outro, abria, lia algumas linhas e tornava a fechar. --- Bom, Lobsang Rampa... A terceira visão! Uns o acusam de plagiador, outros até de lunático. Quem o sabe com certeza? Mas ele existiu, isso é fato...

--- Quem existiu? - pergunta Rani que por instantes teve sua atenção voltada para a música que tocava no velho rádio Motorola que havia conseguido comprar com uma troca feita por duas revistas da playboy da Xuxa.

---- Em Lhasa realmente existiu uma família Rampa. Sei disso porque já falei...- repentinamente ela para e fica séria, colocando o livro que tinha na mão de volta na estante. - Bom, obrigada pela água.- e começou a ir em direção a porta.

---- De nada! É o mínimo que podia fazer!

---- Nos dias de hoje, muitos negam até água! Acredite nessa velha! Em muitos lugares já se mata para ter água.... e o mundo ainda irá ficar pior...

Rani notou que a mulher gostava de conversar, mas tinha medo que algum cliente chegasse ali e se chocasse com aquela figura estranha e bizarra. Baixinha, 1,60, magrinha, com vestido colorido e comprido até os tornozelos, um lenço vermelho na cabeça e óculos de aro grosso sob os olhos, armação tosca e grossa, de cor preta. Mas ela ainda não tinha ido embora. 

Parou sob o batente da porta para a rua e voltou-se para ele.

Os olhos da velha senhora pareciam ter aumentado de tamanho, a pessoa dela parecia ter crescido e quando começou a falar Rani sentiu-se imobilizado. Movendo a mão direita ela esticou o braço e apontou o dedo indicador em sua direção.

--- Amigo, a terceira pessoa que entrar aqui, daqui a três dias, poderá lhe fazer um convite que mudará sua vida, por isso, não se arrisque em vão. - O dedo girando no ar, formando um círculo - Virá a tempestade mas em seguida as coisas boas virão! Mas também estas passarão. Saiba fazer suas escolhas. Mostre que estes livros serviram de algo para sua inteligência e crescimento como ser humano.

Aquelas palavras ficaram ressoando, e quando ele deu por si, a mulher já tinha saído da loja. 

Como que recuperado de um transe, Rani, saiu em disparada pelo pequeno corredor que ia até a rua, em busca da mulher, no entanto não a encontrou. Olhou de um lado, de outro e nada. 

Correu até a esquina. A mulher tinha sumido. 

Não a via em parte alguma. Voltou olhando para dentro das outras lojas que ficavam no caminho da sua até a esquina. Nenhum sinal da mulher.  

 Agora ao lembrar a figura, Rani começou a pensar que ela poderia muito bem passar por uma pequena bruxa como a do seu sonho.

Sentado na cama ele coçou a cabeça. Hoje era o terceiro dia depois que a mulher havia dito aquilo! O que poderia acontecer? Que noticia receberia?

A parte lógica do seu cérebro trabalhava lhe informando que ele havia se deixado levar por uma pré sugestão, algo psicológico.

Não tinha motivo algum para ficar ansioso. Aquilo foi coisa besta. Não tinha nada a ver. O pior é que não parava de pensar no assunto. Não conseguia se livrar daquela ideia. O terceiro dia.

Rani levantou-se da cama e foi até o banheiro.

Debaixo da ducha, ficou a pensar nas coisas que ela falara. Ele deixara de entender alguma coisa que ela dissera, pois também estava ouvindo na rádio algo sobre a greve dos motoristas de ônibus na cidade.

Alguma coisa aquela mulher tinha feito com sua cabeça.

Ele não parava de pensar nas coisas que ela tinha dito.

Naquele mesmo dia, mais tarde Kátia, a moça que trabalhava com ele na loja, e que não estava no momento em que a velha lá entrou, o encontrou rabiscando coisas na capa de um livro.

Ele parecia tão absorto que nem notara que acabara de estragar um livro. Esse para venda já não poderia ir. Kátia chamou sua atenção e ele pareceu sair de um transe. 

Então sua ajudante pegou o livro e o colocou em um canto, onde iria para juntos dos outros livros e revistas que eles entregavam para os rapazes da cooperativa dos catadores de papel reciclado. Mas algo chamou a atenção da garota. Ela percebeu alguns rabiscos e desenhos estranhos. Pegou o livro e o deixou em separado sem falar nada para Rani.

O livro maldito  - Os Órfãos de DeusWhere stories live. Discover now