Capítulo 2 - No Olho da Tempestade

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Kendrat, segundo ano das Guerras Dracônicas.

Os olhos de Mikhail esquadrinharam a praça principal de Kendrat. Ele arfava, o peito subindo e descendo em ritmo acelerado. Há apenas algumas horas, a praça abrigara dúzias de barracas coloridas nas quais ávidos comerciantes competiam pela atenção de uma multidão de pessoas que procurava a melhor barganha em bens e alimentos para manter suas vidas mundanas na pequena cidade.

Eles estavam todos mortos agora. Mikhail sabia disso muito bem apesar de desviar o olhar de todos os corpos carbonizados ou mutilados que encontrara desde que saíra às pressas de sua casa. Das barracas, quedavam apenas escombros flamejantes. O colorido dos tecidos substituído pelo vermelho das labaredas de fogo ardente e das manchas de sangue ainda frescas.

O cenário era caótico. O crepitar das chamas e o calor que delas emanava era sufocante, fazendo Mikhail sentir-se preso no próprio Abismo. Sua cabeça girava de tempos em tempos, tentando levá-lo a acreditar que tudo aquilo era uma mera alucinação, um simples pesadelo. Mas ele sempre era arrastado de volta para a realidade quando ouvia o som de uma estrutura cedendo e desmoronando bem ao seu lado, ou quando escutava um grito dobrando a esquina, um grito desesperado seguido pelo zunido de lâmina cortando carne.

Naquele momento, Mikhail agradeceu à Thyrel por não haver nenhum dra'kul na praça principal. Pelo que tudo indicava, após destituí-la de qualquer criatura vivente logo nos primeiros momentos do ataque, os soldados draconianos passaram a focar sua atenção nas ruelas menores em busca de sobreviventes para completar seu extermínio. Respirou fundo. Vira, há apenas alguns instantes, o dragão que circundava a cidade lançando pilastras de fogo para todas as direções. Mas agora, escondido sob os escombros da antiga taverna na beirada da praça, não conseguia identificar precisamente a posição da abominação alada, pois os restos do telhado sob o qual tomava cobertura não lhe permitiam a visão de um bom ângulo do céu.

Aparentemente, o momento era tão bom quanto qualquer outro. Continuar ali seria o mesmo que esperar para ser descoberto por um dra'kul. Tinha que fugir da cidade e, para tanto, precisava atravessar a praça, pois a maior parte dos outros caminhos estava bloqueada por entulhos flamejantes.

Havia testemunhado todos os seus vizinhos e amigos morrer em um intervalo de poucas horas... Não deixaria o mesmo acontecer com sua família.

Firmou melhor o braço esquerdo, o qual formava uma espécie de berço improvisado em torno de seu irmão mais novo, um bebê de meros meses que não parava de chorar. Lançou um olhar para sua mãe logo ao seu lado, a qual tentava controlar os incessantes soluços de sua irmã do meio, uma garota com não mais do que dez anos de idade e que se agarrava ao colo da mãe como se dela alguma proteção fosse possível tirar.

Mikhail poderia não ter sequer completado vinte anos de existência, mas sabia que jamais sentiria tanto medo em sua vida quanto sentia naquele exato momento.

Lutou com toda coragem que possuía para que o pavor não paralisasse cada músculo de seu corpo. Em uma tentativa de sentir-se mais seguro em relação ao que estava fazendo, ajeitou melhor a mão direita no escudo que carregava. A grande peça metálica havia sido recuperada há pouco do corpo de um guarda que morrera tentando evacuar parte da população. Sua espada fora quebrada no confronto que culminara em sua morte, mas Mikhail conseguiu pelo menos recuperar seu escudo na vã esperança de que ele pudesse oferecer alguma proteção caso se deparassem com qualquer sorte de perigo em seu caminho. Sabia, entretanto, que estava apenas enganando a si mesmo, pois testemunhara com seus próprios olhos a facilidade com que os dra'kul eram capazes de abater alguém. Um escudo brandido por um camponês destreinado jamais seria capaz de conferir qualquer proteção contra as bestas das quais tentavam escapar.

- Mãe, temos que ir – A voz que emergiu de sua boca soou muito mais confiante do que seu real estado de espírito.

Ao ouvir a súplica do filho mais velho, a mulher assentiu com a cabeça, reunindo todas as forças que conseguia para realizar uma nova corrida. Pressionou o rosto da menina contra seu peito para abafar seus soluços e privá-la da hedionda visão que os aguardava. No instante seguinte, abandonaram a cobertura e dispararam objetivando cruzar a praça principal. Durante a corrida, Mikhail, na frente, lançava olhares constantes para a retaguarda, tanto para conferir se algum dra'kul os encontrara quanto para verificar se sua mãe ainda o acompanhava de perto. Em uma dessas olhadelas, atrapalhou-se com o corpulento escudo, abalroando-o contra as pernas e quase se estatelando, com seu irmão nos braços, contra o chão. Por sorte, conseguiu se recompor sem perder muito do momentum que o impulsionava na corrida por sua vida.

Já haviam alcançado a metade da praça, cortando caminho por entre pilhas de destroços e cadáveres, quando o rugido do dragão retumbou pela cidade mais uma vez, fazendo tremer cada uma das estruturas que ainda permanecia de pé. O olhar do jovem instintivamente voltou-se para os céus uma vez que agora podia vislumbrar toda sua extensão sem nenhum empecilho. O que viu, contudo, foi aterrador: o dragão retornava para uma nova investida. A luminescência das chamas em formação já lhe escapava por entre as frestas das massivas presas.

A súbita constatação de que ele e sua família encontravam-se desprotegidos justamente na linha em que o dragão prescreveria em seu rasante fez com que tudo a partir daquele momento parecesse se passar em câmera lenta.

Em um súbito impulso, Mikhail gritou por sua mãe, posicionando seu corpo entre o dela e o do dragão. Com o braço esquerdo, apertou o melhor que pôde a pegada em torno de seu irmão. Com o direito, elevou o pesado escudo em frente a todos no ângulo que melhor os protegeria. Para lhe conferir sustentação, fixou os pés no chão, mantendo as pernas bem espaçadas.

Fechou os olhos logo que avistou as chamas abissais brotando da bocarra da criatura que investia contra eles. Cerrou os dentes com força enquanto ouvia o desolador choro de seus irmãos e os soluços de sua mãe logo atrás de si. Aguardou cada um daqueles excruciantes segundos, esperando sentir a qualquer momento o calor tomar conta de seu corpo enquanto as chamas os engoliam, arrancando-lhes o último momento que teriam de vida. "Pelo menos morreremos juntos, é isso que importa. Não é?", tentou confortar-se ao sentir as lágrimas umedecerem as maçãs do rosto.

Mas as chamas não o engoliram. Pelo menos não da forma que esperava.

O coração de Mikhail congelou por uma batida quando seus ouvidos captaram as chamas atingindo algo. Algo que definitivamente não era seu escudo. Logo após isso, o som produzido por elas pareceu contorná-los de uma maneira que jamais imaginaria ser possível. Não sentiu a pele queimar, não sentiu a dor dominar seu corpo. Não sentiu a morte abraçá-lo.

Abriu lentamente os olhos apenas para presenciar a cena mais inacreditável de sua vida. Em seu desespero por sobreviver, não percebera que um soldado imperial havia corrido até ele e sua família. O homem se atirara entre eles e as chamas no exato momento do impacto, estando agora logo à frente dos demais e sustentando a maior barreira khórica que Mikhail já havia visto: uma enorme esfera azulada de quase cinco metros de diâmetro que os contornava, mantendo-os seguros dentro de um domo intransponível. A barreira segurava as chamas por completo, impedindo que essas penetrassem a proteção khórica. O pilar de fogo se dividiu ante ao impacto com a energia protetora e linguetas ardentes saltaram para todas as direções, cauterizando terra, madeira e pedra indiscriminadamente no entorno do grupo.

Mikhail, com a boca entreaberta, fitou o soldado: ele vestia um peitoral de aço típico dos oficiais da Legião, mas não portava elmo algum, deixando seu cabelo castanho quase raspado à mostra. De seu braço direito, sangue vertia originado de um grande ferimento de espada, mas ele parecia não se importar, pois usava aquele mesmo braço para empunhar uma das ameaçadoras lâminas dra'kul.

De repente, ele virou seu rosto para o garoto. Os duros traços de sua feição eram realçados como em uma pintura fantástica pelo jogo de cores travado entre o rubro das chamas e o cerúleo da barreira khórica. O soldado pousou os impetuosos olhos castanhos sobre o jovem e sua família e deixou um sorriso desenhar-se no canto da boca. Mesmo em meio a todo pandemônio ensurdecedor que o rodeava, Mikhail conseguiu distinguir as palavras que Alistar proferiu:

- Não é hoje que irá morrer, garoto.

Império de CinzasTahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon