CAPÍTULO UM - Então, Fez-se o Caos

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A primeira coisa que minha consciência percebe é que meu rosto arde; o resto é um buraco negro enorme e quase sufocante. Tento me concentrar enquanto tudo em mim acorda aos poucos, saindo do mundo escuro da sonolência até a claridade total. Tudo bem, suspiro para mim mesma, não é a primeira vez que acordo sem nenhuma lembrança na minha mente. E não vai ser a última.

Honestamente? É bom. Minha memória é um campo minado – não como o jogo simples de um computador antigo, mas um real, numa batalha de verdade, no meio de uma guerra mundial, em que você tem mais coisas a perder do que sua própria vida. Esquecer é tudo o que quero. Tudo o que procuro. Tudo o que consigo nas festas e no que uso. E tudo o que não tenho quando meu corpo fica livre, abrindo a porta das lembranças ruins, trazendo à tona tudo o que já provoquei, tudo o que já fiz.

Rolo pela minha cama tentando fugir do sol. Num dia normal, eu teria caído no chão, porque minha cama é de solteiro e, logo, estreita demais para meus movimentos espaçosos. Mas não caio. Ok, não entre em pânico. Provavelmente só estava no extremo da cama e...

— Puta que pariu! – quase grito, quando minha mão encontra algo gelado ao meu lado. Abro os olhos e dou de cara com costas masculinas e negras a minha frente. E geladas. Muito geladas.

Ok. Talvez esteja na hora de entrar em pânico.

Pelo menos, não há sangue. Constatar isso não me deixa aliviada como deveria. O sol ocupa quase toda a cama e eu resmungo porque, por um minuto, eu queria que minha mente estivesse tão clara quanto esse quarto. Mas não há nada que eu possa lembrar – a última memória que tenho é de ter chegado na festa da minha colega de sala, junto da minha melhor amiga.

Juliana deve saber o que aconteceu – Juliana sempre sabia o que minha mente teimava em apagar.

Pego meu celular para ligar para minha melhor amiga, mas a hora mostrada no visor me faz soltar um segundo palavrão.

Puta que pariu. Puta que pariu. Mil vezes puta que pariu!

Dou um pulo da cama e meu movimento – ou meus xingamentos nada contidos – fazem o cara se mexer, soltando um barulho estranho. Prendo a respiração, um misto de medo que ele acordasse e eu tivesse com lidar com a pior coisa do universo, quando a gente fica mais tempo do que deveria na casa de um desconhecido, com quem a gente fez sexo: O Fantasma Do Dia Seguinte; e de alívio, porque ele não está morto. Mais uma morte envolvendo meu nome e juro que não conseguiria lidar.

Bem, não que eu estivesse conseguindo lidar agora, mas, ao menos, ainda tenho minha sanidade mental perfeita. Um ganho e tanto considerando... Bem, tudo.

O toque agudo de Suck It And See me faz dar um pulo da cama no segundo seguinte, enquanto pego minhas roupas espalhadas pelo quarto e corro porta afora, numa distância segura para não acordar o Morto-vivo dono do apartamento.

— Onde você se meteu? – a voz de Juliana consegue ser mais aguda que a música do toque.

Solto um gemido, fechando o olho e sentindo minha cabeça doer. Perceber que minha cabeça dói faz com que me dê conta de que todo o resto dói também, inclusive partes do meu corpo que eu nem tinha consciência que existia.

Pelo amor da Deusa, o que eu fiz ontem?

Abro os olhos e encaro meu corpo branquelo no meio de um corredor bege. Se não fosse o tom do meu cabelo, eu quase poderia me disfarçar na decoração branca e pálida ao meu redor. Quer dizer... pelo menos, poderia me disfarçar se o cara que dorme no quarto ao lado achasse que pontinhos vermelhos e roxos na parede descolorida é perfeitamente normal.

Meu estômago embrulha e eu aperto o celular com força.

— Vênus! – minha amiga chama do outro lado, sua voz aumentando de tom, demonstrando que ela está quase perdendo a paciência.

Juliana quase nunca perde a paciência, e eu não queria ser a causadora numa segunda-feira, sete e quinze da manhã.

— Eu não sei – confesso, prendendo o telefone entre a orelha e o pescoço enquanto tento me vestir. A saia, com certeza, é curta demais para uma segunda de manhã, quando deveria estar entrando na faculdade, mas é melhor vesti-la do que ficar nua. Juliana começa a protestar do outro lado da linha, algo bem típico dela, mas a interrompo sem lhe dar chance de bancar meu grilo falante dessa vez. Tenho certeza de que teremos muitos momentos ao longo do dia para ela fazer isso. – Onde você está?

— Saindo de casa para a aula. Algo que você também deveria estar fazendo.

— Alguma chance de você me esperar aí?

Ouço meia dúzia de resmungos, um barulho estranho e quase identifico um palavrão, uma sequência e tanta para uma amiga tão comportada como a minha.

— Vem logo – ela resmunga. – Eu disse mesmo a seu pai que você dormiu aqui e que iríamos juntas para a aula, pelo menos a mentira não será completa. Mas você vai precisar ligar para ele!

— Eu te amo!

— Eu sei – ela resmunga.

Termino de me vestir e olho para o quarto uma última vez, para ver se o estímulo bastaria para fazer minha memória voltar. Agora ele está de barriga para cima, as mãos cruzadas sobre o peito, como um morto de verdade. Meu estômago embrulha. Eu deveria ficar feliz com o black-out da minha mente, porque significa que as drogas e as bebidas tiveram o efeito que eu busquei, no dia anterior. Mas uma parte de mim pesa em algum ponto da minha consciência. É uma parte pequena, mas pesada, que, por um momento, faz tudo rodar a minha volta. Eu me seguro no umbral da porta e respiro fundo.

O momento passa. A dor de cabeça fica.

Solto um suspiro longo e o cara se vira outra vez, agora ficando bem abaixo do sol que invade o quarto.

Eu deveria deixar um bilhete de despedida? Penso, por um milésimo de segundo, mas então balanço a cabeça e fecho a porta. Afinal, todo mundo sabe, um cara que não te dá uma transa que você seja capaz de lembrar não merece uma palavra sua.

E, em todo caso, é bom deixar essa parte da minha vida perto de outras partes que já foram soterradas e esquecidas em algum ponto da minha memória. Não é, com certeza, algo para me orgulhar. Embora não sinta vergonha.

Nunca sinto vergonha das coisas que faço.

Queria poder dizer o mesmo sobre minha culpa.

Tudo Aquilo Que Eu Não Sou (REPOSTANDO)Where stories live. Discover now