CAPÍTULO DOIS - Boas Meninas Vão Para O Céu

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Eu sei, essa é a pior apresentação da minha vida. Em minha defesa, digo que em sã consciência, com teor alcoólico nulo, eu era uma garota quase normal. Ou tão normal quanto qualquer garota de dezoito anos, que foi parar num curso que não queria fazer, morava com seu pai e trabalhava meio turno numa cafeteria, pode ser.

Quando eu bebia umas doses de caipirinha a mais, eu talvez parecesse um pouco tresloucada. Mas você sabe o que dizem, não é? Boas meninas vão para o céu. As más conquistam os continentes.

Ahn, bem, talvez não seja exatamente assim o que dizem. Mas é o que eu digo. Você vai ter que acreditar em mim.

E eu dispenso o discurso moralista de que uma garota de dezoito anos não deveria acordar em cama de homens desconhecidos, potencialmente mais velhos, depois de potencialmente não ter lembrado de ter se protegido, numa segunda-feira. Eu sou livre. Eu sou minha. Eu posso fazer a porra que eu quisesse.

Bem, não tudo o que quisesse porque ainda vivo com meu pai. Mas posso quase tudo, desde que não ultrapasse os limites paternos. Que, na maioria das vezes, são fáceis de burlar, já que meu pai não dá a mínima para mim.

E tudo bem. Não é como se eu fosse chorar até morrer e pedir piedade de alguém por isso. Eu estou mais preocupada em aproveitar a minha vida – um caminho melhor a percorrer do que me humilhar por um pouquinho de atenção do cara que não me perdoava por toda tragédia que causei.

É nisso que estou pensando enquanto ele resmunga do outro lado do telefone que eu precisava ter mais responsabilidade e lembrar a ele quando fosse dormir fora, porque, embora tenha dezoito anos, ainda vivo debaixo de seu teto e lhe devo satisfações.

É uma boa piada. Eu preciso me esforçar para conter minha risada.

A reclamação termina antes do taxista parar na casa da minha amiga, que já está na porta, com os braços cruzados e a típica mochila de gatinhos nos ombros, quando desço do carro.

— Ei! – chamo, dando meu melhor sorriso – Você tem trinta pilhas aí?

Juliana arregala seus olhos grandes e verdes e corre em minha direção.

— De onde você veio? De Marte?

Dou uma risadinha, porque me chamo Vênus. Vir de Marte é uma alusão perfeitamente cabível. Juliana revira os olhos para mim e enfia a mão dentro da mochila.

— Você só pode estar brincando comigo! Já ligou para o seu pai?

— Dez minutos de resmungo – digo, sacudindo o celular. – É um recorde entre nós. Você acha que o Guines aceitaria colocar esse dado no livro?

Minha amiga cerra os olhos ao mesmo tempo que arqueia a sobrancelha, uma expressão e tanta para uma aquela hora da manhã. Consigo ouvi-la gritar dentro da mente, mas o que quer que tenha pensado, não sai de sua boca. Ao invés disso, ela suspira, paga o taxista e me puxa para sua casa, ignorando minhas reclamações e tropeços sobre meu salto alto.

— Eu não sei como você consegue – ela diz, por fim, batendo a porta da sua casa. Juliana mora num lar de verdade, consigo até sentir o ambiente acolhedor que pais amorosos oferecem a ela, todos os dias, bem diferente da frieza das paredes que eu chamo de minha casa. – Se fosse comigo, minha mãe me mataria, então meu pai me ressuscitaria para me matar de novo, então me tirariam da morte outra vez e me matariam juntos.

— Seus pais se importam – resmungo, sacudindo os ombros.

Ela me olha, mas só suspira dessa vez.

Juliana tem sorte: sua mãe não morreu no parto, sua irmã continua viva e muito bem encaminhada numa grande universidade e seus pais a amam. Ela nunca vai entender como é viver na minha casa. Não é culpa dela, é claro. Mas isso não me faz me sentir menos solitária.

— Drica acabou de avisar que a professora do primeiro tempo faltou. Parece que hoje é seu dia de sorte.

— Nunca estou com sorte.

Ela revira os olhos para mim, enquanto prende seu cabelo pintado de ruivo num rabo de cavalo bagunçado. Não sei se é porque hoje é segunda-feira, mas ela está mais calada do que o normal, depois que faço uma merda como essa que fiz. Esse pensamento faz minha cabeça dar um nó. Ou talvez seja só minha ressaca aumentando de nível e potencializando toda a dor no meu corpo.

— Vai se arrumar. Deus sabe que você está precisando – ela resmunga. – Vou pegar um tênis da minha irmã para você.

— Me arranja uma camisa dessa – aponto para a blusa com a logo da UFBelo que ela veste. – E, bem, uma mochila.

— Você quer um pouco de dignidade também, Vênus? – ela suspira, coçando a têmpora.

Franzo o cenho, mas minha amiga não diz mais nada. Ao invés disso, aumenta a velocidade dos passos, sobe a escada e some do meu campo de visão. Eu não consigo ser tão rápida assim com a letargia que a ressaca me causa, por isso apenas me arrasto até o banheiro do segundo andar.

O reflexo no espelho é mais cruel do que minha amiga foi. Minha maquiagem está borrada e tem tons vermelhos do batom espalhados por todo meu rosto. Meus dedos tocam a mancha rosa em volta do meu pescoço e sinto meu estômago embrulhar.

Pisco para a imagem branca a minha frente, tão discrepante das cores espalhadas pelo meu corpo. Não sei o que aconteceu. Não tenho uma opinião formada se o que aconteceu foi bom ou não, porque não lembro de nada. E também não sei nem o nome do cara que dormiu comigo. Não sei nada.

Eu posso optar por achar minha ignorância angustiante. Mas esse é um caminho muito mais perigoso, por isso apenas decido lavar meu rosto com força até meu estômago parar de embrulhar.

Juliana entra no banheiro e joga a camisa preta para mim, antes que eu perceba o movimento. Ela cai entre nós, no chão do banheiro.

— Achei um all-star para você.

— Você é a melhor amiga do mundo – sorrio.

Ela não sorri. Ao invés disso, balança a cabeça e sai do banheiro.

Sei que Juliana não concorda com meu estilo de vida. Somos amigas desde que a encontrei chorando, agarrada a um ursinho encardido, no canto da sala do maternal, quinze anos atrás. Com exceção de poucos seriados, nunca achamos algo que concordássemos cem por cento. Ela é romântica, clichê, idealista e apegada ao passado de um jeito que me esforço todos os dias para não ser.

O passado é perigoso, já dizia os textos, apostilas e livros de História que meus professores pediram para ler na primeira semana de aula. Não tem por que se agarrar a ele.

É por isso que tento tanto esquecer.

Tudo Aquilo Que Eu Não Sou (REPOSTANDO)Where stories live. Discover now