Entre o real e o imaginário

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Vir para a chácara me faz explorar lugares onde posso criar. Gosto de fazer meus esconderijos se tornarem grandes e desconhecidos mundos fantásticos, já minha mãe, não gosta quando eu me escondo. Aqui eu sou livre, mamãe não reclama que passo muito tempo brincando de faz de conta, ela não me controla tanto nesse terreno quanto em casa e é por isso que gosto tanto de vir para cá.

Temos uma árvore em especial que é a minha favorita, o tronco largo facilita a escalada. Papai me disse que ia construir uma casinha nela, mas até hoje ele não fez. Bem, eu continuo esperando.

Nós não temos muitos vizinhos por aqui e os que moram perto são todos adultos, por isso, eu costumo brincar sozinha. Meus pais compraram essa chácara quando eu tinha nove anos, minha irmã do meio, a Carol, já estava morando na Irlanda. Ela se mudou faz um tempo, não me lembro muito de como é estar com ela, eu tinha só cinco anos quando ela viajou. Graciela, a mais velha, só vem aqui em épocas comemorativas, o marido dela sempre vem junto, mas não converso com eles porque sempre me falta assunto.

Caminhei até a árvore e segurei firme o tronco dela, escalei com um pouco de dificuldade porque meus braços finos não me ajudam muito nesta tarefa. De repente, meu pé escorregou quando eu estava perto de alcançar o galho que queria. Acho que o pequeno gnomo da ilha perdida me puxava para que eu caísse no grande vale de Áthar. Eu precisava fazer algo, tirei meu amuleto do pescoço e segurei com força contra o meu peito, desejei fugir de Áthar. Imaginei a pequena ilha suspensa e saltei rumo ao templo flutuante.

Cai no chão de forma desajeitada, batendo o ombro contra a grama. Eu quis chorar, levantei rápido, esfregando o local que estava doendo muito. Lembrei que uma aventureira não chora e que precisava juntar os amuletos sagrados do mundo digital de Heyarthium. Respirei fundo deixando a vontade de chorar para trás e segui pelo caminho de pedra até chegar no lago que me levaria ao reino submerso.

Mergulhei na água gelada e nadei por um longo caminho. Eu ainda estava submersa, mas consegui identificar uma figura do lado de fora pelo reflexo da água.

— Manuela, saia da piscina. Está na hora de tomar banho.

Ouvi minha mãe me chamar assim que voltei à superfície para respirar. Em volta da piscina alguns parentes acenavam para mim.

— Vamos, vá tomar banho depressa, o pessoal está começando a chegar — mamãe dizia pegando minha toalha e me levando para dentro da casa — Onde você estava escondida? Eu te procurei por um tempão, quase que você se atrasa, Manu.

— Eu estava brincando lá na parte de baixo, perto da árvore que o papai prometeu fazer a minha casinha.

Ela me olhou séria, mas não sabia dizer se mamãe estava brava ou pensativa. Tirou a toalha de cima de mim e ligou o chuveiro.

— Ele já começou a fazer, mas não sei se será naquela árvore. Nem todas aguentam uma casinha em cima. Agora, entra aqui e vamos lavar esse cabelo.

Eu já tenho idade para tomar banho sozinha, mas ela insiste em ajudar a lavar o meu cabelo que fica cada vez mais longo. Tomei coragem para dizer que eu não queria mais que cortasse tanto, porque se dependesse dela, eu sempre teria cabelo chanel. Depois do banho, coloquei meu vestido lilás e sequei o cabelo. O legal de ter deixado crescer, é que nas pontas ele sempre enrolava fazendo cachinhos. Minha mãe uma vez me disse que quando ela era mais nova, o cabelo era igual ao meu.

Fui para a sala cumprimentar minha irmã e o marido dela. Eles estavam sentados no sofá assistindo um filme muito antigo na televisão. Graciela levantou para vir em minha direção, abriu os braços e me apertou, como de costume.

— Parabéns maninha. Muita saúde e anos de vida.

— Obrigada, Gra — respondi sem jeito, torcendo para que ela me soltasse logo.

— Tenho uma coisa para você — ela disse, se virando para pegar um pacote em cima da mesinha de centro.

Ela me entregou o embrulho com um sorriso no rosto e um olhar curioso. Abri o presente bem devagar, eu não queria rasgar o embrulho e a demora me dava mais tempo para pensar na reação que eu faria ao ver o que era. Depois que parei de ganhar brinquedos, eu não tinha mais curiosidade em abrir presentes, sabia que seria algo que não me interessava. Puxei o tecido de dentro do embrulho e levantei para visualizar melhor, era um conjunto de shorts jeans e uma regata laranja. Eu nem gosto dessa cor.

— Obrigada­— agradeci tentando sorrir

— E ai? Me fala se você gostou. Quanto desânimo. Eu achei a sua cara, você já está uma moça.

— Eu não sei...É bonito. Obrigada— esbocei um sorriso forçado enquanto guardava o presente dentro do embrulho.

Eu odeio quando falam que já estou mocinha, nenhuma criança quer ouvir isso. Ainda estou na escola e gosto de assistir desenhos. Logo estarão me perguntando sobre garotos, será que eles não se tocam que isso é chato demais?

Fui até o meu quarto guardar o presente que ganhei da Graciela e voltei para a sala e depois para o quintal, encarar aquele monte de parentes que só vejo no natal. Ganhei mais alguns presentes, todos eram peças de roupas. Tentei agradecer da maneira mais educada que consegui. Joguei todos em cima da cama.

Percebi que meu pai tinha feito churrasco, meus tios e os vizinhos comiam o resto da carne feito gulosos e foi apenas por causa deles que notei que há haviam almoçado. Peguei alguns espetinhos de queijo e anéis de cebola, fiz um prato com arroz e farofa e sentei para comer. Todos conversavam alegres, a maioria falava alto demais. Fitei o céu enquanto comia. Quase nunca chovia na chácara e o céu tinha uma cor azulada bem forte. As vozes foram ficando para trás, me concentrei na minha comida e nos pássaros que voavam por cimas das copas das árvores.

Uma mão tampou meus olhos, a pessoa estava atrás de mim e demorou um tempo até dizer algo.

— Terra chamando Manu. Adivinha quem é?

— Thalita! — exclamei retirando as mãos dela dos meus olhos

— Como sabia? — ela perguntou fingindo que estava brava.

— Pela sua voz — eu sorri — e só você fala assim— completei

Thalita também tem uma chácara perto daqui e ela estuda na minha escola. Nós quase não conversamos lá, ficamos em uma turma diferente e temos amigos que não combinam muito.

— Feliz aniversário Manu! — disse entregando um pequeno embrulho retangular.

Sorri ao pegar o presente, algo me dizia que não era roupa. Finalmente eu ganharia algo que poderia combinar mais comigo, ser algo que gosto. Abri a caixa com pressa e me deparei com um caderno pequeno, era um diário lilás com borboletas. Fiquei muito feliz com o presente, o melhor do dia. Agradeci com um abraço apertado e fomos para mesa, estava na hora dos parabéns, o meu momento favorito em festas de aniversário.

"Parabéns pra você, nessa data querida.

Muitas felicidades, muitos anos de vida.

E para a Manu, nada? Tudo!

Então, como é?

É pique, é pique,

É pique, é pique , é pique

É hora, é hora,

É hora, é hora, é hora

Rá, tim, bum

Manu,Manu!"

A música era cantada e eu fiquei olhando todos os parentes que estavam presentes, imaginando o que estariam pensando. Alguns eu não via desde o último aniversário e eles tinham até mudado um pouco. Ouvi um deles gritar:

— Agora faz um desejo e assopra a velinha!

Acho que foi um dos meus tios, não prestei atenção. O que eu poderia pedir? Nessas horas eu nunca sabia o que desejar, acho que tenho tudo o que preciso...

BillyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora