Memória Um: No Carro

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O veículo se movia lentamente, pegando velocidade ao entrar na avenida. O vidro esfumaçado e a noite escura dificultavam a visão do lado de fora e em certo momento perdi a orientação por quais ruas seguíamos.

- Onde fica esse lugar? - Perguntei, já não reconhecendo minha própria cidade. Como esperado, não tive resposta, então decidi mudar a pergunta - Por que vocês estão fazendo isso comigo? Com minha família?

- Porque foi necessário - o homem de branco não mudou seu tom e nem virou para me responder - Foi preciso fazer isso com você.

- Por que? - E novamente, sem resposta - Vocês são alguma máfia ou alguma coisa do tipo?

- É, você pode dizer que sim. Precisamos de algo nesse endereço, algo que pertence a você

- Particularmente eu?

O homem de branco apenas me olhou pelo retrovisor do carro, sem expressão, no máximo o resquício de um sorriso irônico e controlado.

- Eu não conheço esse lugar.

- Não. Mas ele te conhece.

Olhei novamente para fora e pelo pouco que vi, reparei que não estávamos mais na cidade, e sim numa estrada de asfalto velho e esburacado.

- Não conheço essa estrada - disse.

- Ela é da sua infância - foi a resposta curta que tive do homem de branco e que me estranhei. Jamais tinha passado por aquela região da cidade.

- O que sabem sobre mim? Por que isso tudo está relacionado a mim? Por que toda essa coisa sem sentido está acontecendo e o que você pensa que sabe sobre minha infância?

- Sua mãe que nos disse - e dessa vez o homem de branco não escondeu seu sorriso sarcástico - Que essa estrada é da sua infância.

Me encostei no banco e comecei a pensar o que eles teriam feito à minha família. A gama de situações que surgiam na minha mente em certos momentos me tranquilizava e na maioria dos outros me deixava a beira do pânico. Enquanto isso tudo passava em minha mente, minha ansiedade percorria o meu corpo através da perna agitada, da mão que cutucava a própria pele e da boca que mordia e tirava peles do lábio. Para evitar que essa sensação crescesse em mim, comecei a focar meus pensamentos nos meus irmão e meus pais, então me lembrei da última vez que tinha visto minha mãe.

Facilmente eu conseguia projetar as imagens em minha mente, e assim consegui me recordar do último feriado, quando eu e meus irmãos fomos visitar nossos pais. Nos últimos anos eram apenas nos feriados que tínhamos a oportunidade para visitarmos juntos e reunir toda a família para celebrar. Nem os aniversários eram mais em família.

Mas eu lembrava de minha mãe, sentada na poltrona próxima a varanda, com meu gato no colo, tomando uma xícara de café e feliz de estar vendo a família unida mais uma vez. Ela me perguntava sobre o trabalho, e eu respondia que estava bem. Ela me perguntava sobre os amigos e eu dizia que estava tudo certo. Só que nada estava bem naquela época, todos estes aspectos estavam próximos do fim e eu deveria ser mais aberto e falar mais sobre meus problemas com ela, mas não queria preocupá-la. Uma pessoa que já tinha três filhos e um marido velho e doente para cuidar. O que eu estava vivendo na minha vida naquele momento era nada em comparação com estes desafios da rotina de minha querida e tão batalhadora mãe.

Mas talvez ela tivesse respostas.

Talvez ela pudesse me aconselhar nisso tudo, em todas essas dificuldades...

Talvez...

Olhei para fora novamente e nos vi em um bosque. Repentinamente uma memória antiga e esquecida me reapareceu, e me lembrei de uma trilha coberta de árvores altas e que cobriam o caminho com sombras frescas. Ventava de forma leve naquela manhã, e eu era uma criança de apenas oito anos de idade e sem medo das coisas, segurando firme a mão de uma mãe que sorria, usando um vestido leve e branco, de alças finas e que brilhava ao passar por raios escassos que venciam as sombras. O cabelo curto de minha mãe esvoaçava, sua risada era um som doce e que envolvia-me carinhosamente. De dentro do carro eu acreditava até mesmo sentir o aroma dela.

Aquele sorriso era um tesouro, e nos anos seguintes aos problemas de saúde do meu pai, eles se tornaram diamantes cada vez mais raros. Aquela mulher, que com uma mão segurava meu punho e com a outra segurava um ramo de flores colhidas no bosque, era uma deusa. Uma mulher para se venerar, idolatrar e para se descrever em histórias.

Mas quanto mais eu me lembrava deste momento perdido em minha cabeça, menos sentido aquele bosque que nos rodeava fazia sentido.

- Eu lembro - disse ao motorista do carro - eu lembro desse bosque e de quando vim com minha mãe aqui, mas é impossível que esse seja o mesmo. Aquele bosque era na Europa, e não nesta cidade. Esse lugar não é daqui.

- Tudo está aqui - Foi a única resposta que ouvi, e não fui capaz de compreender o que o homem de branco queria dizer com isso. Me afundei novamente em silêncio no banco estofado e continuei a olhar para o bosque enquanto ele se abria cada vez mais.

Depois de um tempo, o homem retornou a falar:

- Chegamos.

O carro parou silenciosamente após subir uma estrada longa e estreita, que terminava em um penhasco.

A CasaWhere stories live. Discover now