Pesadelo Um: Irmã

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Jamais serei capaz de descrever com clareza esta cena. Se possível, removeria todas essas memórias de minha mente para sempre. O que escrevo aqui são apenas as minhas poucas percepções rasas do que ocorreu.

Começo descrevendo o ambiente: após lançar-me contra a porta no final do corredor, entrei em um pequeno banheiro, não mais de quatro metros quadrados. O piso era de azulejo branco desenhado e as paredes eram cobertas de ladrilhos rosa-salmão. Havia vapor espesso no cômodo e o som de água caindo dava sinais de que alguém se banhava ali. Enquanto o vapor saia pela porta aberta, minha visão do interior do recinto ficava mais clara. Primeiro, consegui ver uma pia branca e um espelho oval pendurado sobre ela, depois, a banheira branca coberta por uma cortina que permitia enxergar a silhueta feminina e jovem, uma mulher que lavava seus cabelos compridos que caiam pelas costas. Por trás do som do chuveiro elétrico eu conseguia ouvi-la cantarolando. A música, eu não reconhecia. Mas reconhecia a voz.

Aquela era a voz da minha irmã e aquela silhueta era de seu corpo de vinte anos tocado pelas gotas do chuveiro. Cogitei de imediato que aquilo era mais uma ilusão, produto de quem estivesse por trás daquela casa. Minha família, mantida em cativeiro nesse lugar, não estaria recebendo boa estadia ou preocupada em se banhar. Cauteloso, comecei a me aproximar da banheira e cogitei chamar minha irmã pelo seu nome. Mas enquanto me aproximava, parei ao olhar para cima e reparar no que havia no teto sobre a banheira.

A palavra monstro define hoje em dia um ser disforme, fantástico e ameaçador. Uma coisa contrária a natureza, uma anomalia, uma deformidade. Aquilo era um monstro. Seu corpo era uma massa disforme e metamórfica, que se alterava a cada segundo que eu olhava para ela. Sua cabeça, ou aquilo que eu acreditava ser um crânio, era envolvida por dezenas de espinhos. Ele era a escuridão, sem forma, sem contornos. Um pedaço da noite roubado dela, uma mancha no canto do olho que não desaparece.

Meu corpo retesou e parou, inclinando-se para trás. A massa que cobria o teto do banheiro escorreu e ficou balançando por trás das costas de minha irmã, com a cabeça para baixo. Alongando um membro semelhante a um braço, pude ver que seu final se curvava e afinava como uma longa foice. O corpo se movia em total silêncio e até o chuveiro parecia ter parado de fazer barulho. O único com era o cantar de boca fechada de minha irmã, que não era perdia sua calma nem por mim, nem pelo monstro.

Me afastando, continuei a olhar fixo para a imagem daquelas silhuetas. Prestei atenção em cada movimento do monstro, em como ele, parecendo uma gota gigante prestes a cair do teto, se endireitava de cabeça para baixo. Não consegui tirar os olhos de quando seu corpo esticou os braços para trás, duas lâminas curvas, perfeitas. E então, em um rompante, esses membros lançaram-se à frente, e o cantar incessante de minha irmã silenciou-se de forma abrupta.

Meu corpo perdeu os movimentos naquele momento, e não sei se cheguei a gritar ou se apenas minha boca se escancarou em uma expressão de terror. A silhueta do corpo da minha irmã estava erguida reta, trespassada por duas lâminas. A cabeça aparecia acima da região coberta pela cortina, e aquele rosto era o de minha irmã, com os olhos arregalados e a boca semiaberta, queixo mole e sem vida.

Uma das lâminas foi retirada lentamente do corpo e enquanto ela saia era possível ouvir o sangue escorrendo na banheira junto com a água do chuveiro. O movimento foi apenas para o braço afiando se esticar e apunhalar novamente minha irmã pelas costas até a ponta afiada sair por entre os peitos. Sangue bordô espirrou nos ladrilhos rosados, mas o que ficava retido na lâmina era tão escuro quanto a arma que invadia o corpo.

A outra lâmina foi retirada e lançada novamente contra o corpo, acertando o chuveiro e liberando a água agora de forma torrencial pelo encanamento. O apunhalamento continuou incessante, cada vez mais rápido e feroz, desfigurando mais e mais o corpo de minha querida irmã, tão jovem, tão delicada e outrora cheia de vida. Da monstruosidade assassina, um burburinho grave era emitido, como se fossem palavras recitadas de boca fechada, com tonalidades de raiva, revolta e violência. Investidas incessantes mancharam as paredes, teto e chão com o sangue que espirrava do corpo. Até mesmo minha roupa foi respingada com o sangue fraterno. O monstro parecia cada vez mais ensandecido em sua matança, errando golpes que cortavam a cortinas, as parede e tudo que estivesse ao seu redor.

Os murmúrios foram crescendo e crescendo até o momento no qual o monstro lançou o corpo desfalecido de minha irmã na banheira repleta de sangue e atacou tudo ao seu redor, arranhando e perfurando ladrilhos e derrubando a cortina que cobria parcialmente a imagem que eu observava.

Quando a cortina caiu, revelando a banheira ensanguentada e a totalidade daquela massa escura, o monstro virou-se para mim. Seu rosto tinha cavidades vazias onde deveria existir olhos, nariz e boca, como se isso tivesse sido retirado dele. No lugar de dentes, espinhos negros se projetavam e na região ocular do rosto aquela escuridão parecia vibrar em frenesi.

Ele gritou para mim. Um grito tão alto que não atingiu apenas meus ouvidos de forma violenta, mas foi capaz de rachar minha alma ao meio. Um grito de puro desespero e dor, um pedido de socorro há muito perdido e que agora era apenas um suplício pelo cessar de uma tortura crônica. Um berro que na verdade era um espinho afiado, invisível, que me trespassava de forma dolorosa e incessante. Um som que fez com que meu corpo despertasse com o único âmbito de fugir por qualquer caminho que fosse.

Virei e parti correndo pelo corredor pelo qual eu havia entrado no banheiro, mas aquele não era mais o caminho de antes. A criatura quebrou a banheira, espalhando água e sangue quente pelo azulejo, e se botou em perseguição a mim pelo corredor. Quando olhava para trás, via que ela se movimentava em quatro membros afiados e que parecia mais com uma sombra viva e sem dono que me perseguia com um berro incessante.

Deixei de olhar para trás, tapei meus ouvidos e foquei nas direções que tinha para correr por aquele caminho desconhecido, mas os som daquele berro ainda era capaz de me atingir. Era como se meu coração pulasse para sair do próprio corpo. Minhas pernas ignoravam tudo e me levavam pelo labirinto. Esquerda, direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita, direita, esquerda, frente. Adiante, adiante e mais a longo possível daquele horror.

Corri até meus tímpanos chegarem próximos de estourar, corri até meu corpo pedir para desistir e deixar aquela criatura saciar sua insanidade comigo. Corri até encontrar uma porta, pela qual passei e fechei, fazendo uma questão idiota de trancar, como se isso pudesse parar aquele ser.

Me afastei da porta sem tirar os olhos dela, ouvindo a criatura se debater com a porta de madeira que de alguma forma realmente impedia que ela avançasse. Me afastei até encostar minhas costas em uma parede e então sentei, encolhido, com olhos arregalados em direção àquela porta e ouvindo o som vindo de trás dela.

Tentei respirar, mas o ar não conseguiu alcançar meus pulmões. Minhas mãos se fecharam, meus punhos se tornaram duros e encolhi meu corpo ao máximo, aninhando minhas pernas em um abraço apertado até me machucar. Eu não conseguia esticar nenhuma membro de meu corpo e até minha cabeça abaixou, mas meus olhos continuavam abertos ao máximo e o som da porta continuava a estourar em meu ouvido. Meu corpo tremia violentamente, minhas respirações ofegantes faziam um grunhido agudo, como se o canal pelo qual o ar passava estivesse completamente fechado, restando apenas um fio de espessura pelo qual o oxigênio podia passar. Eu estava em pânico, em pânico por tudo que havia acontecido desde a manhã, ao acordar sem nada e sem ninguém. Pânico ao entrar em um carro desconhecido com um alguém desconhecido para um lugar que nunca tinha ouvido falar. Estava hiperventilando por tudo que tinha acontecido desde o momento que virei a maçaneta da porta e adentrei este inferno. Minha irmã tinha sido assassinada, e seu executor batia sem parar na porta, cada batia parecia travar mais meu corpo, cada tragada de ar que não chegava aos pulmões travava mais os meus punhos, cada pensamento que passava pela minha mente me deixava mais e mais desesperado. Lágrimas escorriam pelo meu rosto em uma torrente incessante. Aquilo era o fim. Caso o monstro não quebrasse a porta e cortasse minha jugular com sua lâmina, a própria falta de ar iria me sufocar e me desestabilizar no lugar mais perigoso e violento pelo qual passei em toda minha vida.

Mas quando eu menos esperava, quando estava tomando para mim mesmo um desses dois destinos certos, eu senti aquela mão em meu ombro, quente, macia e surpreendentemente amigável. Ouvi os barulhos da porta diminuírem até cessar, e fiquei apavorado ao ver em minha frente um rosto de um ser humano vivo, que me segurava pelos ombros e dizia com uma voz doce e tranquila:

- Respire.

A CasaWhere stories live. Discover now