Isabela

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ALGUNS DIAS DEPOIS...

Creeec.

Esse é o barulho que mais detesto no mundo.

Sabe do que estou falando, né? Daquele barulhinho desagradável que uma barata faz quando é esmagada, sem piedade alguma, por um chinelo, um jornal enrolado, ou qualquer outro objeto contundente que o assassino tenha em mãos no momento do desespero. É o som da morte.

É o som que estou escutando dentro dos meus pensamentos, desde que coloquei os olhos nas anteninhas da...

Isabel Cristina? Rebeca? Milca? Cleane? Não sei ainda, mas as tais anteninhas não param de se mexer. E sua dona, para mim, tem cara de menina. Ela mexe as antenas com classe, como se estivesse jogando os cabelos, sei lá.

Ahimsa.

O primeiro dos cinco preceitos que regem o código de conduta moral do budismo é se abster de matar qualquer ser vivo. E até algum tempo atrás eu o seguia à risca, não matava nem mosquito, mas agora, me preocupar com meu carma se transformou em um luxo que nem sempre posso ter.

— Faz tempo que não escolho nada com H. Gosta de Henrieth? Dá para chamar de Henry... — paro de falar, abruptamente, quando noto um... — PAR DE ASAS? — Bufo. Tudo o que eu precisava para me atrasar para o meu compromisso era ser obrigada pelo destino a brincar de pegar com uma barata que tem asinhas. Por que justo hoje?

Hesito em dar um jeito nela, e não é por falta de coragem.

Coragem é meu nome do meio.

Se precisar correr, como uma desembestada, pelo apartamento, pegá-la pelas antenas e arremessá-la da janela, para não perder o horário, é exatamente o que vou fazer, mas antes preciso batizá-la ou, do contrário, não vou conseguir dormir à noite. Essa é a única razão para que eu ainda esteja plantada no meio da sala feito uma sakura. Porque preciso amenizar o peso que sinto na consciência. Minhas crenças continuam sendo muito importantes para mim. Aurora? Renata? Cinthia? Não gosto de repetir nomes e pelo que me lembro matei essas na semana passada. Batuco o pé no assoalho tentando encontrar um nome que ainda não tenha usado, enquanto ela continua andando pela sala como se estivesse no apartamento dela...

Já sei.

Poxa, eu já me odeio!

Largo a bolsa em cima do sofá e vou atrás dela, encontrando-a enquanto tenta escapulir pelo ralo do banheiro para bater perna na rua.

— Eu até queria, mas não posso ter um bichinho e não confio em ninguém da sua espécie com as patas perto da comida — Explico, tirando a arma do crime do pé esquerdo. É claro que eu não completo que, se eu pudesse, escolheria um cachorro. Gosto de cachorros.

Mas também me contentaria com uma gatinha.

Dita não precisa escutar uma afronta dessas nos seus momentos finais.

— Me perdoa, tá bom? Não é nada pessoal... — Lá vamos nós: esticando a mão para trás, fazendo a mira, fechando os olhos e...

Creeec.

Eu me arrepio todinha.

— Nos vemos no céu, Benedita — embora tenha chance de apenas uma de nós chegar lá. E aqui não estou me referindo à desalmada que está indo buscar o scarpin preto preferido, lamentando pela vida que tirou. Perdoa, Buda.

Depois de conferir que minha mira parece mais certeira a cada dia que passa, e também não é para menos com o tanto que eu tenho treinado, sumo com o cadáver, recoloco a bolsa no ombro, passo na cozinha para dar um beijo nos meus pais e saio de casa, ignorando o fato de que esse não era um bom dia para atrair nenhum tipo de carma negativo para cima de mim, matando qualquer coisa viva, mesmo que fosse uma tão nojenta como a Benedita.

Todos os beijos que roubei - DegustaçãoWhere stories live. Discover now