Capítulo I (Lokine)

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Às vezes enlouquecer é uma resposta adequada à realidade.

Philip K. Dick

Ele olha para o espelho e não se vê

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Ele olha para o espelho e não se vê. Existe um corpo lá. Uma pessoa estranha. Ele acha o rosto familiar. De quem seria esse rosto? Consternado, toca na nova face, assiste o semblante se assustar. Belisca as bochechas. Sua pele tem outra cor. Percebe que sua barriga está menor, bem menor. "Quem é esse jovem?" Sussurra e percebe os olhares curiosos das pessoas no banheiro. Tenta disfarçar enxaguando o rosto, não quer parecer louco. Seus olhos são claros agora, possuem um leve tom de violeta.

Não se reconhece?

Você sabe.

No fundo você sabe.

Tudo que você é e onde tem de procurar.

Ele sai do banheiro e se depara com o saguão do aeroporto, sente-se pequeno. Seu coração dispara quase em pânico. "Como posso estar em outro corpo?" No painel de voos ele lê a mensagem: embarque próximo. Respira, de pouco em pouco diminuindo o ritmo, seguindo as recomendações de seu psicólogo.

 Respira, de pouco em pouco diminuindo o ritmo, seguindo as recomendações de seu psicólogo

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Caminha. Sente o corpo mais desenvolto, alto e forte. Repara nos olhares libidinosos de moças jovens. Olha para a mão esquerda e confirma, a aliança está lá. Quer embarcar, voltar para a família, saber se perceberão que seu rosto, seu físico inteiro mudou.

Ninguém vai perceber, seu babaca medroso.

Não se preocupe. Guardarei seu segredo.

Chegando ao portão de embarque, vê a fila constituída. Os passageiros apresentam seus documentos e passagens e adentram o avião. O olhar dele tem angústia e loucura, ele sabe disso, mas não pode esconder, sempre foi uma pessoa transparente. Senta-se em uma cadeira, coloca ao lado o case de seu trompete e sua mochila. Dali pode observar a fila. Aflito procura sua carteira na mochila. Com as mãos trêmulas abre a carteira e retira seu documento de identidade holográfico, quer ver a foto, o nome. Sente uma mistura de alívio e desespero quando o holograma mostra o mesmo estranho nome de sempre: Lokine Iwin Kimo e o mesmo rosto rechonchudo. O loiro de olhos verdes como o mar da Tailândia, só mesmo no reflexo do espelho. Aquilo não faz sentido. Acredita que não poderá embarcar, a aeromoça perceberá que ele não é ele. Será? Lokine sente o corpo esquentar e gotas de suor se fazerem em sua fronte.

Você é um louco desvairado ou um sonhador?

Não se faça de desentendido.

Ele tenta entender a loucura. Com seu sensophone tira uma selfie. O sorriso desencontrado e sua palidez deixam o retrato horrível. Envia a foto por whatsappyx com um recado para a esposa:

Quase embarcando. Beijos.

O coração acelera a cada segundo. Três sinais azuis no ecrã confirmam que a esposa viu a foto e a mensagem. O aparelho avisa que ela digita uma resposta. Lokine morde os lábios. A fila do embarque agora é mínima.

Te amo, chega logo.

Ele aperta os cabelos, coça forte a cabeça. Ela não percebeu nada. Segue para o embarque com a passagem e o documento nas mãos. A atendente confere atenta as informações.

— Que nome diferente!

Ele sorri.

— É havaiano. Uma parte de minha família é de lá.

— Ok, senhor. Pode seguir. .

O avião está lotado. Lokine é o último a embarcar. Procura seu assento. Escolheu o último banco, no corredor. Não gosta de sentir-se preso, encurralado por outras pessoas. Chegando ao local, confere as letras e os números no bilhete de embarque. Um homem alto, jovem, de touca escura e barba falha está em seu lugar.

— senhor. Acho que este lugar é meu.

O homem tem os olhos azuis claros, gélidos.

— Cara, em outro lugar.

Lokine procura algum lugar vago. A lotação é evidente. Normalmente chamaria a aeromoça, mas sente-se forte, sente-se outro.

— Senhor, o avião tá lotado. Comprei esse assento.

O homem olha furioso para Lokine.

— Com licença, senhores. Temos que partir, por favor se acomodem. — diz a aeromoça, aproximando-se.

Lokine sente-se aliviado pela presença da moça.

— Moça, comprei esse assento. Parece ter havido algum engano. — diz, mostrando seu bilhete a mulher.

A aeromoça confere o bilhete e dirige-se ao cidadão na poltrona.

— Senhor, posso ver o seu bilhete?

O homem sorri irônico. Lokine repara na beleza da aeromoça, ela possui um rosto de traços latinos, olhos negros densos e tem simpatia no semblante.

— Cala boca, sua vaca! Esse é o meu lugar. — diz o homem de gorro levantando-se bruscamente.

O movimento violento dos braços é ágil. O objeto pontiagudo penetra a jugular da moça. Sangue. Rostos respingados. O corpo frágil caído. Gritos. Correria. Lokine observa a cena em choque.

— Viu o que você fez, otário? Quem você pensa que é? — diz o homem de gorro olhando firme para Lokine.

Lokine não consegue acreditar no que está vendo, no que está ouvindo.

O golpe vem. Lokine levanta as mãos se protegendo. . O homem de gorro tenta retomar a arma, mas Lokine empurra-o. As pessoas gritam, entaladas no corredor, fugindo da violência. O homem de gorro avança. Lokine defende-se. Não existe golpe que ele não preveja. A adrenalina não permite que a dor venha. A faca continua presa em sua mão. Lokine acerta a traqueia do agressor, que cai ajoelhado. O maluco leva as mãos para trás da cintura. Lokine pressente que ele puxará outra arma, retira a faca de sua palma e crava o objeto pontiagudo no olho esquerdo do sujeito. Sangue. Um vermelho denso, escuro, nunca antes visto por Lokine. O corpo do homem curva-se. Gemidos e estalos de ossos podem ser ouvidos. O corpo tomba de forma desengonçada. Morte. Assassinato.

Eu te avisei

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Eu te avisei.

Reconheça quem é você. Reconheça!

O Outro no EspelhoWhere stories live. Discover now