02 Modernismo

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(Figura Só - Tarsila do Amaral)

Atualmente

_ Faz alguns anos. Eu geralmente não me lembro muito disso, mas eu posso contar para você se quiser.

_ Eu adoraria escutar. _ Digo sorrindo e entregando outra cor de pincel a senhora de mais de oitenta anos sentada a minha frente.

Ela já havia me contado a mesma história quinhentas vezes, sempre com os mesmos detalhes, e ela nunca poupava detalhes, mas eu sempre a escutava pacientemente. Na verdade, eu não me importava nem um pouco, ela realmente adorava me contar de como choveu granizo no dia do seu casamento há sessenta anos.

Ela se chamava Mary e certamente era minha favorita de todas as senhoras que eu dava aulas de pintura as quartas. Não era bem uma aula de pintura, está mais pra um momento de colorir pois eu apenas imprimia copias de desenhos e distribuía pelo salão enquanto eles optam por tintas ou pinceis.

Mary tinha Alzheimer e eu sempre tinha que me apresentar para ela na aula seguinte, mas ao mesmo tempo eu amava isso e amava o empenho que ela tinha para colorir meus desenhos. Mesmo que bem tremido seja o resultado.

Os outros idosos, ou pelo menos a maioria deles, vinham do asilo até aqui apenas para dar uma volta ou ver um lugar diferente, por mais que me irrite o descaso com minhas aulas, eu não poderia reclamar, eu os entendia, o asilo da região não era muito divertido ou agradável.

Eu não sabia ao certo quanto tempo passamos conversando, mas quando percebi, a assistente social já estava ajudando os idosos a se levantarem para seguirem até a van da prefeitura que os levariam embora.

Ajudei Mary e alguns outros se ajeitarem na van e minutos depois me encontrei sozinha na sala com um monte de folhas e pinceis para recolher.

_ Foi um bom dia, Lily. _ Calvin, o enfermeiro do centro. _ Você quer carona?

_ Ótimo dia, Calvin. Quero sim, se não for incomodar. _ Digo enquanto me abaixo para pegar todos os lápis que Sebastian deixou cair no chão enquanto se esforçava para colorir um barco em vermelho.

Calvin sorriu e começou a me ajudar a recolher os materiais antes de irmos para o estacionamento.

_ Madá me disse que vão fechar o centro social em dois meses. _ Comento enquanto coloco o cinto de segurança.

Pergunto em busca de mais informações. Me disseram que o prédio fora vendido e que eu só teria meu emprego por alguns meses.

_ Eu sinto muito, sei que você, assim como nós, precisa do emprego, mas a prefeitura vendeu o prédio e o novo dono já está pedindo para uso.

_ Vocês tem outro lugar para abrir outro centro?

Observo as árvores e casas passando pela janela, Calvin dirige no limite da velocidade mínima. O tempo está meio fechado e parece que vai chover mais tarde.

_ Não, ainda estamos esperando uma resposta da prefeitura, mas provavelmente não teremos retorno.

_ Já enviou algum documento para algum político?

_ Já tentamos de tudo, mas não adianta. Já não nos pertence o prédio.

_ Toda as aulas serão canceladas?

_ Música, arte, ginástica, Ioga, pilates, fisioterapia, as consultas que doutor Francis fornecia. Tudo cancelado. Todos avisados.

Como o prefeito teve a coragem de vender o prédio? Isso é um absurdo. A fúria me sobe pois eu era de longe a pior inimiga do prefeito desde que ele decidiu que seria uma boa ideia colocar a biblioteca pública da cidade no terceiro andar de um prédio sem elevadores. Eu infernizei tanto a vida dele e das pessoas da secretaria de cultura que eles enfim decidiram voltar a biblioteca para o prédio original e bloquear todos meus e-mails e telefone.

Havia pouco tempo que trabalhava no centro comunitário e já estava sem trabalho novamente. Fora todas as aulas de graça que o lugar fornecia. Algumas pessoas que não tinham condições para pagar consultas ou fisioterapia dependiam somente desse lugar. Os moradores carentes esperavam a semana toda para a refeição aos sábados.

_ Afinal quem foi o egoísta mercenário que comprou o prédio?

_ Ryan Threston. Aquele lutador.

_ Quem?

O nome não era familiar de modo algum e pelo tom de voz de Calvin, era minha obrigação conhecer.

_ Não conhece Ryan Threston? Ele luta no UFC.

Torci meu nariz. Eu não acompanhava lutas. Eu nem sabia o que era lutar no UFC.

_ Não sou muito fã de luta.

_ Ele é famoso por nunca ter sido derrotado no UFC até o início do ano passado, ele ia ganhar o cinturão, mas machucou e nunca mais voltou. Ele teve umas quinze lutas já e possui vários recordes. Um deles é a luta mais cara. Você não lembra disso? A luta bilionária, não lembra?

Pisquei algumas vezes. Calvin parecia ser bastante fã desse cara. Eu realmente não fazia ideia de quem seja. Eu não era muito boa com esportes então escolhi odiar cada um deles. Nunca fui boa na educação física e eu sempre tinha que usar roupas apertadas que me faziam sentir uma salsicha pela falta de curvas. Desde então tenho traumas de roupas de ginástica ou qualquer calça que demonstre demais minhas pernas muito finas ou blusas que ignorem a minha incapacidade de usar sutiã com bojo. Não que eu me incomode com não ter curva alguma, mas eu não preciso ficar evidenciando isso para todo mundo. Mas o motivo principal nem era esse, eu não consigo assistir pessoas brigando sem entrar em pânico.

_ Desculpe, eu realmente não conheço.

_ De todo modo ele me tirou meu emprego, então não sou mais tão fã dele assim.

_ O que um lutador vai fazer com um prédio antigo desses? Está caindo aos pedaços.

_ Ele não quer usar o prédio, Lily. Ele quer só o terreno.

Fiquei em silêncio por um tempo tentando entender o que ele queria dizer com isso, mas quando entendi me arrependi instantaneamente.

_ É um prédio histórico, ele não tem direito de fazer isso.

_ O prédio é dele, Lily. E como você mesma disse... está caindo aos pedaços.

Ah não, não mesmo. Ele não irá fazer isso. Esse prédio não será demolido. Não enquanto eu estiver viva.

Amuleto da SorteNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ