Capítulo 1

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Sentado em uma cadeira de vime na varanda, você sorve o último cigarro de sua vida. O sabor não cai tão bem quanto há um mês. Nem poderia. Há um mês seus pulmões ainda funcionavam a contento. Você ignora e absorve o gosto como vem. Bem ou mal, é esse sabor que você levará ao túmulo.

À sua frente, sobre a grama, um jornal do dia.

Você ri ao lembrar que dia é hoje.

Sete de setembro de 2020.

Bicentenário da Independência.

Uma data que lhe deu muito trabalho nos últimos quatro anos.

Mas também muito dinheiro.

O jornal está aberto na página que você acaba de ler. Uma notícia de canto informa que no dia anterior o Senado aprovou projeto de lei que flexibilizou intervenções em imóveis tombados como patrimônio histórico.

O jornal não menciona, mas neste momento um projeto de shopping center, até então parado, começa a se viabilizar. Ainda hoje — mais tardar amanhã — o emissário do grupo empresarial irá se encontrar com o seu, em algum quarto de hotel. O dinheiro irá para sua esposa e seus filhos, que gozarão de décadas de tranquilidade financeira. Afinal, foi você que fez injunções junto ao ministro da Cultura para que o presidente da República enviasse o projeto ao Congresso.

Só foi possível se safar porque o noticiário do dia foi todo focado na comemoração do Bicentenário da Independência. Eventos ocorreram em todo o país. Shows, espetáculos teatrais e de dança, palestras... Muitos em casas de cultura e espaços culturais construídos para a data. Nenhum jornalista questiona os valores despendidos ou os resultados das licitações.

É tão fácil se safar...

Com o futuro de sua família garantido, só lhe resta esperar. Três meses, disse o médico. Ou seja, a qualquer momento. Talvez esta noite mesmo...

Você não tem medo. Por que teria? Afinal não há nada depois. Céu, inferno, encarnação, transcedência — tudo isso, e tudo o mais, meras palavras de consolo.

Palavras de consolo que ao fim prejudicam os que acreditam nelas.

Afinal, acreditar que exista algo depois da morte é se colocar a pergunta: "o que há depois?". Pergunta que cria um estado de curiosidade, que tende a se tornar maior à medida em que os anos avançam. Ao fim, acreditar que há algo além termina em ansiedade.

Você só espera o sono definitivo. Sem expectativas. Isso lhe dá uma sensação de paz, de sossego. Esse sentimento, junto com o sabor do cigarro e a visão do lusco-fusco no firmamento, o sol a desaparecer em meio a tons de laranja e rosa, as últimas irradiações a se espraiar pelas águas do mar, lhe deixa em um êxtase como você jamais teve na vida.

Você se deixa ficar ali, absorvido na sensação, até a brasa consumir o cigarro até o toco. Então, com um safanão do dedo médio, você joga a guimba ao chão. Continua sentado, enquanto o sol desaparece no firmamento. A claridade continua, a tonalidade rosa-alaranjada dando aos poucos lugar a tons de cinza. Logo a escuridão chega, engolindo o gramado à frente, o portão gradeado e a rua pavimentada que separa a casa do mar.

Assim que escurece, você se ergue da cadeira e entra na casa.

A Última NoiteWhere stories live. Discover now